ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO
Friedrich Engels
Prefácio à Primeira Edição/ 1884
As páginas seguintes vêm a ser, de certo modo, a execução de um testamento. Marx dispunha-se a expor, pessoalmente, os resultados das investigações de Morgan em relação com as conclusões da sua (até certo ponto posso dizer nossa) análise materialista da história, para esclarecer assim, e somente assim, todo o seu alcance. Na América, Morgan redescobriu, à sua maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, quarenta anos antes – e, baseado nela, chegou, contrapondo barbárie e civilização, aos mesmos resultados essenciais de Marx. Devo assinalar que os mestres da ciência “pré-histórica” na Inglaterra tiveram, quanto ao Ancient Society (1) de Morgan, a mesma atitude que já tinham assumido, em face de O Capital de Marx, os economistas oficiais da Alemanha, que andaram durante muito tempo a plagia-lo, com zelo igual ao empenho em silencia-lo. O meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever. Disponho, entretanto, não só dos excertos detalhados que Marx retirou à obra de Morgan, como também das suas anotações críticas, que reproduzo aqui sempre que oportunas.
De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção de meios de subsistência, de produtos alimentícios, roupa, habitação, e instrumentos necessários para tudo isso; do outro lado, a produção do próprio homem, a continuação da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro. Quanto menos desenvolvido é o trabalho, mais restrita é a quantidade dos seus produtos e, por conseqüência, a riqueza da sociedade; com tanto maior força se manifesta a influência dominante dos laços de parentesco sobre o regime social. Contudo, no quadro dessa estrutura da sociedade baseada nos laços de parentesco, a produtividade do trabalho aumenta sem cessar, e, com ela, desenvolvem-se a propriedade privada e as trocas, as diferenças de riqueza, a possibilidade de empregar força de trabalho alheia, e com isso, a base dos antagonismos de classe. Os novos elementos sociais, que, no transcurso de gerações, procuram adaptar a velha estrutura da sociedade às novas condições, até que, por fim, a incompatibilidade entre estas e aquelas leva a uma revolução completa. A sociedade antiga, baseada nas uniões gentílicas, desagrega-se, em conseqüência do choque das classes sociais recém-formadas; dá lugar a uma nova sociedade organizada em Estado, cujas unidades inferiores já não são gentílicas e sim unidades territoriais – uma sociedade em que o regime familiar está completamente submetido ás relações de propriedade e na qual têm livre curso as contradições de classe e a luta de classes, que constituem o conteúdo de toda a história escrita, até aos nossos dias.
O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido nos seus traços essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. A sua obra não foi trabalho de um dia. Levou cerca de quarenta anos a elaborar os seus dados, até conseguir dominar inteiramente o assunto. E o seu esforço não foi em vão, pois o seu livro é, atualmente, um dos poucos que fazem época.
No que a seguir se expõe, o leitor distinguirá, com facilidade, o que é de Morgan e o que eu acrescentei. Nos capítulos de história consagrados à Grécia e a Roma, não me limitei a reproduzir a documentação de Morgan, mas acrescentei todos os dados de que dispunha. A parte que trata dos celtas e dos germanos é essencialmente minha, pois os documentos de Morgan sobre o assunto eram de segunda mão; e, quanto aos germanos, salvo os escritos de Tácito, só conhecia as péssimas falsificações liberais do senhor Freeman. Tive que refazer toda a argumentação econômica, que, se era suficiente para os objetivos de Morgan, não bastava, em absoluto, para os meus. Finalmente, respondo, sem dúvida, por todas as conclusões, desde que Morgan não seja expressamente citado.
F. Engels
Prefácio à Quarta Edição/1891
As edições anteriores, de que se fizeram grandes tiragens, estão esgotadas há bem uns seis meses, e o editor vinha-me pedindo, já há algum tempo, que preparasse uma nova. Trabalhos mais urgentes impediram que eu o fizesse até esse momento. Desde o aparecimento da primeira edição, já se passaram sete anos, durante os quais se verificaram grandes progressos no estudo das formas primitivas da família. Foi necessário, portanto, corrigir e aumentar minuciosamente a obra, tanto mais que se pensa em estereotipar o atual texto, o que me havia impossibilitado, por algum tempo, de o corrigir.
Como disse, revi com atenção todo o livro e fiz-lhe alguns acréscimos, em que julgo ter considerado devidamente o atual estado da ciência. Além disso, faço neste prefácio uma breve exposição do desenvolvimento da história da família, desde Bachofen até Morgan, principalmente porque a escola pré-histórica inglesa, que tem um acentuado matiz chauvinista, continua a fazer todo o possível para silenciar a revolução produzida pelas descobertas de Morgan nas velhas noções da história primitiva, embora não sinta o menor escrúpulo em apropriar-se dos resultados obtidos por Morgan. Também em outros países se segue com zelo, em alguns casos, o exemplo dado pelos ingleses.
O meu trabalho foi traduzido em diversos idiomas. Primeiro, em italiano: L’origine della famiglia, della proprietá privata e dello stato, versione reviduta dall’autore, di Pasquale Martigneti, Benevento, 1885. Logo em seguida, apareceu a tradução romena: Origina familei, proprietatei private si a statului, traducere de Joan Nadejde, publicada na revista de Jassi Contemporanul, de setembro de 1885 a maio de 1886. Depois, a dinamarquesa: Familjens, Privatejendommens og Oprindelse, af Forfatteren gennemgaat Ud gave, besörget af Gerson Trier, Kobenhavn, 1888. E esta sendo impressa uma tradução francesa de Henri Ravé, baseada na presente edição alemã.
Até o início da década de sessenta, não se poderia sequer pensar numa história da família. As ciências históricas ainda se encontravam, nesse domínio, sob a influência dos Cinco Livros de Moisés. A forma patriarcal da família, pintada nesses cinco livros com maior riqueza de minúcias d que em qualquer outro lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se identificava – excetuando a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história. Quando muito, admitia-se que nos tempos primitivos pudesse ter havido um período de promiscuidade sexual. É certo que, além da monogamia, conheciam-se a poligamia no Oriente e a poliandria na Índia e no Tibete; mas estas três formas não podiam ser dispostas historicamente, em ordem sucessiva: figuravam juntas, umas ao lado das outras, sem nenhuma conexão. Também é verdade que, em alguns povos do mundo antigo e em algumas tribos selvagens ainda existentes, a descendência é contada por linha materna e não paterna, sendo aquela a única válida, e que, em muitos povos contemporâneos, é proibido o casamento dentro de determinados grupos maiores – naquela época ainda não estudados de perto – ocorrendo este fenômeno em todas as partes do mundo; estes fatos, certamente, eram conhecidos, e em cada dia a eles se acrescentavam novos exemplos. Mas ninguém sabia como aborda-los e, inclusive, na obra de E. B. Tylor (1865) apareciam como “costumes exóticos”, ao lado da proibição, vigente em algumas tribos selvagens, de tocar na lenha que ardesse com qualquer instrumento de ferro, e outras futilidades religiosas semelhantes.
O estudo da história da família começa, de fato, em 1861, com o Direito Materno de Bachofen. Nesse livro, o autor formula as seguintes teses: 1 – primitivamente, os seres humanos viveram em promiscuidade sexual (impropriamente chamada de heterismo por Bachofen); 2 – estas relações excluíam toda a possibilidade de estabelecer, com rigor, a paternidade, pelo que a filiação apenas podia ser contada por linha feminina, segundo o direito materno, e isso verificou-se em todos os povos antigos; 3 – como conseqüência desse fato, as mulheres, como mães, como únicos progenitores conhecidos da jovem geração, gozavam de grande apreço e respeito, alcançando, de acordo com Bachofen, o domínio absoluto (ginecocracia); 4 – a passagem para a monogamia, em que a mulher pertence a um só homem, incidia na transgressão de uma lei religiosa muito antiga (isto é, do direito imemorial que os outros homens tinham sobre aquela mulher), transgressão que devia ser castigada, ou cuja tolerância se compensava com a posse da mulher por outros, durante determinado período.
Bachofen encontrou as provas dessas teses em numerosos trechos da literatura clássica antiga, por ele reunidos com zelo singular. A passagem do “heterismo” à monogamia e do direito materno ao paterno, segundo Bachofen, processa-se – particularmente entre os gregos – em conseqüência do desenvolvimento das concepções religiosas, da introdução de novas divindades, representativas de idéias novas, no grupo dos deuses tradicionais, que eram a encarnação das velhas idéias; pouco a pouco os velhos deuses vão sendo relegados para segundo plano. Dessa maneira, pois, para Bachofen, não foi o desenvolvimento das condições reais de existência dos homens, mas o reflexo religioso dessas condições no cérebro deles, o que determinou as transformações históricas na situação social recíproca do homem e da mulher. Dentro do seu ponto de vista, Bachofen interpreta a Oréstia de Ésquilo como um quadro dramático da luta entre o direito materno agonizante e o direito paterno, que nasceu e conseguiu a vitória sobre o primeiro, na época das epopéias. Levada pela sua paixão por Egisto, seu amante, Clitemnestra mata seu marido Agamêmnon, quando este regressava da guerra de Tróia; mas Orestes, filho dela e de Agamêmnon, vinga o pai, matando a mãe. Isso faz com que se veja perseguido pelas Erínias, seres demoníacos que protegem o direito materno, segundo o qual o matricídio é o mais grave e imperdoável de todos os crimes. Apolo, no entanto, por intermédio do seu oráculo, havia incitado Orestes a matar sua mãe, e Palas Atena, que intervém como juiz (ambas as divindades representam aqui o novo direito paterno), protegem Orestes. Atena ouve ambas as partes. Todo o litígio está resumido na discussão de Orestes com as Erínias. Orestes diz que Clitemnestra cometeu um duplo crime ao matar quem era seu marido e pai de seu filho. Por que razão as Erínias o perseguiam, o visavam, em especial, se ela, a morta, tinha sido muito mais culpada? A resposta é surpreendente:
“Ela não estava unida por vínculos de sangue ao homem que assassinou.”
O assassinato de uma pessoa com a qual não houvesse vínculo de sangue, mesmo que fosse o marido da assassina, era falta que podia ser expiada – e não concernia, absolutamente, às Erínias. A sua missão era a de punir o homicídio entre consangüíneos e o pior e mais imperdoável dos crimes, segundo o direito materno: o matricídio. Nesse ponto, contudo, intervém Apolo, defensor de Orestes, e em seguida Atena submete o caso ao Areópago – o Tribunal do Júri ateniense; há o mesmo número de votos pela condenação e pela absolvição. Então, Atena, como presidente do Tribunal, vota em favor de Orestes e absolve-o. O direito paterno vence o materno. Os “deuses da jovem geração”, assim denominados pelas próprias Erínias, são mais poderosos que elas, pelo que só lhes resta a resignação e, finalmente convencidos, porem-se ao serviço do novo estado de coisas.
Essa nova e inteiramente correta interpretação da Oréstia é uma das melhores e mais belas passagens do livro, mas, ao mesmo tempo, é a prova de que Bachofen acredita, como outrora Ésquilo, nas Erínias, em Apolo e Palas Atena, isto é, crê que foram estas divindades que realizaram, na época heróica da Grécia, o milagre da destruição do direito materno e sua substituição pelo paterno. É evidente que tal concepção, que considera a religião como a alavanca decisiva na história do mundo, conduz, afinal de contas, ao mais puro misticismo. Por isso, estudar a fundo o volumoso livro de Bachofen é um trabalho árduo e, muitas vezes, pouco proveitoso. Isto, no entanto, não diminui os seus méritos de pioneiro, já que foi o primeiro a substituir as frases sobre um desconhecido e primitivo estágio de promiscuidade sexual, pela demonstração de que, na literatura clássica grega, há muitos vestígios de que entre os gregos e os povos asiáticos existiu realmente, antes da monogamia, um estado social em que não somente o homem mantinha relações sexuais com várias mulheres, mas também a mulher mantinha relações sexuais com diversos homens, sem que com isso violassem a moral estabelecida. Bachofen provou que esse costume não desapareceu sem deixar vestígios, sob a forma de necessidade, para a mulher, de se entregar, durante determinado período, a outros homens – entrega que era o preço do seu direito ao matrimônio único; que, portanto, primitivamente só se podia contar a descendência pela linha feminina, quer dizer: de mãe a mãe; que essa validez exclusiva da filiação feminina se manteve por muito tempo, mesmo no período posterior de monogamia, com a paternidade já estabelecida, ou, pelo menos, reconhecida; e, por último, que essa situação primitiva das mães, como únicos genitores certos de seus filhos, lhes assegurou, bem como às mulheres em geral, a posição social mais elevada que tiveram desde então até aos nossos dias. Na verdade, Bachofen não enunciou esses princípios com muita clareza, porque o tolhia o misticismo da suas concepções; mas o simples fato de os ter demonstrado, em 1861, tinha o significado de uma revolução.
O volumoso tomo de Bachofen estava escrito em alemão, isto é, na língua da nação que menos se interessava, então, pela pré-história da família contemporânea. Por isso, permaneceu ignorado. O sucessor mais imediato de Bachofen, nesse campo, revelou-se em 1865, sem nunca ter ouvido falar dele. Trata-se de J. F. Mac Lennan, a antítese do seu predecessor. Ao invés do místico genial, temos aqui um árido jurisconsulto; em lugar de uma exuberante e poética fantasia, as plausíveis combinações de um arrazoado de advogado. Mac Lennan encontra em muitos povos selvagens, bárbaros e até civilizados, dos tempos antigos e modernos, uma forma de matrimônio em que o noivo, só ou assistido por seus amigos, deve arrebatar a sua futura esposa da casa dos pais, simulando um rapto violento. Este costume deve ser vestígio de um outro anterior, segundo o qual os homens de uma tribo obtinham mulheres arrebatando-as, à força, de outras tribos. Mas como teria nascido esse “matrimônio por rapto”? Enquanto os homens puderam encontrar mulheres suficientes na sua própria tribo, não tiveram motivo para semelhante procedimento. Por outro lado, e com freqüência não menor, encontramos em povos não civilizados certos grupos (que em 1865 ainda eram muitas vezes identificados com as próprias tribos) no seio do quais era proibido o matrimônio, vendo-se os homens obrigados a buscar esposas – e as mulheres, esposos – fora do grupo; enquanto isso, outro costume existe, em outros povos, segundo o qual os homens de determinado grupo só devem procurar as suas esposas no seio do seu próprio grupo. Mac Lennan chama as primeiras de tribos exógamas e as segundas de endógamas; e, sem mais, estabelece logo uma antítese bem definida entre “tribos” exógamas e endógamas. E, ainda quando as suas próprias investigações sobre a exogamia lhe evidenciam que, em muitos casos, senão na maioria, ou mesmo em todos, essa antítese só existe na sua imaginação, nem por isso deixa de toma-la como base para toda a sua teoria. De acordo com ela, as tribos exógamas só podiam tomar mulheres de outras tribos, o que apenas podia ser feito mediante rapto, dada a guerra permanente entre as tribos, característica do estado selvagem.
Mais adiante, Mac Lennan pergunta: de onde provém esse costume de exogamia? Na sua opinião, as idéias de consangüinidade e incesto – que surgiram muito mais tarde – nada têm a ver com ele. A sua causa poderia ser o costume, bastante difundido entre os selvagens, de matar as crianças do sexo feminino logo após o seu nascimento. Disso resultaria um excedente de homens em cada tribo, considerada isoladamente, tendo como conseqüência imediata a posse de uma mesma mulher, em comum, por vários homens, isto é, a poliandria. Daí decorria, por sua vez, que a mãe de uma criança era conhecida, mas não o pai; por isso, a ascendência era contada pela linha materna e não paterna (direito materno). E da escassez de mulheres no seio da tribo – escassez atenuada, mas não suprimida pela poliandria – advinha, ainda, outra conseqüência, que era precisamente o rapto sistemático de mulheres de outras tribos. “Como a exogamia e a poliandria procedem de uma só causa, do desequilíbrio numérico entre os sexos, devemos considerar que, entre todas as raças exógamas, existiu primitivamente a poliandria. . . E, por isso, devemos ter como fato indiscutível que, entre as raças exógamas, o primeiro sistema de parentesco era aquele que reconhecia apenas o vínculo de sangue pelo lado materno.” (Mac Lennan, Estudos de História Antiga, 1886; “O Matrimônio Primitivo”, p. 124).
O mérito de Mac Lennan consiste em ter indicado a difusão geral e a grande importância do que ele chama a exogamia. Quanto ao fato da existência de grupos exógamos, não o descobriu e muito menos o compreendeu. Sem falar das notícias anteriores e isoladas de numerosos observadores – exatamente as fontes de Mac Lennan – Latham já havia descrito, com muita precisão e justeza (Etnologia Descritiva, 1859), esse fenômeno entre os magars da Índia, e afirmara que o fenômeno predominava em geral e se verificava em todas as partes do mundo. O próprio Mac Lennan cita esta passagem. Além disso, também o nosso Morgan observara e descrevera perfeitamente o mesmo fenômeno - e isto em 1847, nas suas cartas sobre os iroqueses (na American Review), e em 1851 na Liga dos iroqueses, ao passo que, como veremos, a mentalidade de advogado de Mac Lennan causou confusão ainda maior sobre o assunto do que a causada pela fantasia mística de Bachofen no terreno do direito materno. Outro mérito de Mac Lennan consiste em ter reconhecido como primária a ordem de descendência baseada no direito materno, conquanto, também aqui, conforme reconheceu mais tarde, Bachofen se lhe tenha antecipado. Mas também, neste ponto, ele não vê claro, pois fala, sem cessar em “parentesco apenas por linha feminina” (“hinship through females only”), empregando continuamente essa expressão exata para um período anterior, na análise de fases posteriores de desenvolvimento, em que, se é verdade que a filiação e o direito de herança continuam a contar-se exclusivamente segundo a linha materna, o parentesco por linha paterna também já está reconhecido e expresso. Observamos aqui a estreiteza de critério do jurisconsulto, que forja um termo jurídico fixo e continua a aplica-lo sem o modificar, a circunstâncias para as quais já não serve.
Parece que, apesar da sua plausibilidade, a teoria de Mac Lennan não deu ao seu autor a impressão de estar muito solidamente assente. Pelo menos, chama-lhe a atenção “o fato, digno de ser notado, de que a forma do rapto (simulado) das mulheres seja observada mais marcada e nitidamente entre os povos em que predomina o parentesco masculino (quer dizer: a descendência por linha paterna)” (pág. 140). E diz, mais adiante: “É muito estranho que, segundo as notícias que temos, o infanticídio não se pratique por sistema em toda a parte onde a exogamia e a mais antiga forma de parentesco coexistem” (pág. 146). Esses dois fatos contestam, diretamente, a sua maneira de explicar as coisas, e Mac Lennan não lhes pode opor senão novas hipóteses, ainda mais confusas.
Não obstante, a sua teoria foi acolhida na Inglaterra com grande aprovação e simpatia. Mac Lennan foi considerado por todos como o fundador da história da família e a primeira autoridade na matéria. A sua antítese entre as “tribos” exógamas e endógamas continuou a ser a base reconhecida das opiniões dominantes, apesar de certas exceções e modificações admitidas e transformou-se nos antolhos que impediam ver livremente todo o terreno explorado e, por conseguinte, todo o progresso decisivo. Em face do exagero dos méritos de Mac Lennan que esteve em voga na Inglaterra e, logo a seguir, em toda a parte, devemos assinalar que, com a sua antítese de “tribos” exógamas e endógamas, baseada na mais pura confusão, ele causou um prejuízo maior do que os serviços prestados com as suas pesquisas.
Entretanto, cedo começaram a ser conhecidos fatos e mais fatos que não cabiam no seu ordenado esquema. Mac Lennan somente conhecia três formas de matrimônio: a poligamia, a poliandria e a monogamia. Logo, porém, que a atenção foi dirigida para esse ponto, encontraram-se provas, cada vez mais numerosas, de que, entre povos não desenvolvidos, existiam outras formas de matrimônio, nas quais vários homens tinham em comum várias mulheres; e Lubbock (A Origem da Civilização, 1870) reconheceu como fato histórico este matrimônio por grupos (“communal marriage”).
Logo a seguir, em 1871, surgiu Morgan com documentos novos e, sob muitos pontos de vista, decisivos. Convencera-se que o sistema de parentesco próprio dos iroqueses, e ainda em vigor entre eles, era comum a todos os aborígines dos Estados Unidos, quer dizer, estava difundido em todo um continente, ainda quando em contradição formal com os graus de parentesco que resultam do sistema conjugal ali imperante. Incitou, então, o governo federal americano a que recolhesse informações sobre o sistema de parentesco os demais povos, de acordo com um formulário e quadros por ele próprio elaborados. e das respostas deduziu: a) que sistema de parentesco indo-americano estava igualmente em vigor na Ásia e, sob uma forma ligeiramente diferente, em muitas tribos da África e da Austrália; 2) que esse sistema tinha a sua mais completa explicação numa forma de matrimônio por grupos, que se encontrava em vias de extinção no Havaí e em outras ilhas australianas; 3) que, nessas mesmas ilhas, ao lado dessa forma de matrimônio, existia um sistema de parentesco que só podia ser explicado por uma forma de matrimônio por grupos, ainda mais primitiva, mas hoje desaparecida.
Morgan publicou os dados coligidos e as conclusões que deles tirou no seu Sistema de consangüinidade e afinidade da família humana, em 1871, levando, assim, a discussão para um campo infinitamente mais amplo. Tomou como ponto de partida os sistemas de parentesco e, reconstituindo as formas de família que lhes correspondiam, abriu novos caminhos à investigação e criou a possibilidade de se ver muito mais longe na pré-história da humanidade. A aceitação desse método anulava as frágeis construções de Mac Lennan que logo defende a sua teoria numa nova edição do Matrimônio Primitivo (Estudos de História Antiga, 1876). Embora ele próprio edifique a história da família baseando-se em simples hipóteses, e de modo extremamente artificial, exige de Lubbock e Morgan não apenas provas de cada uma das suas asseverações, mas provas irrefutáveis, as únicas admitidas pelos tribunais de justiça escoceses. E isso da parte de um homem que, apoiando-se no íntimo parentesco de tio materno e sobrinho, entre os germanos (Tácito, Germânia, cap. XX), e no relato de César de que os bretões tinham as suas mulheres em comum, por grupos de dez ou doze, e em todas as demais referências feitas pelos autores antigos a respeito da posse em comum das mulheres dos bárbaros, deduz, sem vacilar, que reinou a poliandria em todos esses povos! Parece que se está a ouvir um promotor público que se permite todas as liberdades para preparar as suas conclusões, mas exige do defensor a prova mais formal e juridicamente perfeita de cada palavra que este pronuncie.
Afirma que o matrimônio por grupos é pura invenção e, desse modo, fica muito atrás de Bachofen. Segundo ele, os sistemas de parentesco de Morgan não são mais do que simples preceitos de cortesia social, demonstrados pelo fato de que, quando os índios dirigem a palavra a um estrangeiro, a um branco, tratam-no por “irmão” ou “pai”. É como se se afirmasse que as palavras pai, mãe, irmão e irmã são simples formas de abordar uma pessoa, porque padres e abadessas católicos são igualmente tratados por “pai” e “mãe”, e os frades e freiras, da mesma forma que os maçons e os membros dos sindicatos ingleses nas suas reuniões solenes, por “irmão” e “irmã”. Numa palavra: a defesa de Mac Lennan foi extremamente fraca.
Permanecia, contudo, um ponto no qual ele era invulnerável. A antítese das “tribos” exógamas e endógamas, base do seu sistema, longe de estremecer, continuava a ser universalmente reconhecida como o fundamento de toda a história da família. Admitia-se que a demonstração dessa antítese por Mac Lennan era insuficiente, e colidia com os dados que ele próprio apresentava. Mas considerava-se como um evangelho indiscutível a antítese em si, a existência de dois tipos, que mutuamente se excluíam, de tribos autônomas e independentes, num dos quis as mulheres eram tomadas no seio da própria tribo pelos homens, ao passo que no outro isso era terminantemente proibido. Consulte-se, por exemplo, As Origens da Família, de Giraud-Teulon (1874), e ainda a obra de Lubbock, A Origem da Civilização (quarta edição, 1882).
Nessa altura, aparece o trabalho fundamental de Morgan, A Sociedade Antiga (1877), que constitui a base da obra que ofereço ao leitor. Aqui, Morgan desenvolve com plena nitidez o que, em 1871, apenas conjeturava de modo vago. A endogamia e a exogamia não formam antítese alguma; a existência de “tribos” exógamas não está provada, até hoje, em nenhuma parte. Todavia, na época em que ainda dominava o matrimônio por grupos – e provavelmente existiu em toda a parte, num dado tempo – a tribo dividiu-se num certo número de grupos, de gens consangüíneos por linha materna, entre as quais era expressamente proibido o matrimônio, de maneira que, embora os homens de uma gens, e realmente faziam-no, conseguissem suas mulheres dentro de própria tribo, tinham, no entanto, de ir busca-las fora da sua gens.
Dessa maneira, se as gens eram estritamente exógamas, a tribo – que compreendia a totalidade das gens – era, na mesma proporção, endógama. Com isso, ruiu definitivamente o que ainda restava da artificial construção de Mac Lennan.
Mas Morgan não se limitou a isso. A gens dos índios americanos serviu-lhe, ainda, para um segundo e decisivo passo na esfera das suas pesquisas. Nessa gens, organizada de acordo com o direito materno, descobriu a forma primitiva de que saiu a gens ulterior, baseada no direito paterno, como a que encontramos entre os povos civilizados da antiguidade. A gens grega e romana, que tinha sido, até então, um enigma para os historiadores, foi finalmente explicitada, tomando-se como ponto de partida a gens indígena: o que deu uma nova base ao estudo de toda a história primitiva.
A descoberta da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens de direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política.
Essa descoberta permitiu a Morgan esboçar, pela primeira vez, uma história da família, onde pelo menos as fases clássicas da sua evolução, em linhas gerais, são provisoriamente estabelecidas, tanto quanto o permitem os dados atuais. Iniciou-se, evidentemente, uma nova era no estudo da pré-história. Em torno da gens de direito materno, gravita, hoje, toda essa ciência; a partir da sua descoberta, sabe-se em que direção encaminhar as pesquisas e o que estudar, assim como de que modo devem ser classificados os resultados. Por isso, fazem-se atualmente, nesse terreno, progressos muito mais rápidos do que antes de aparecer o livro de Morgan.
Também na Inglaterra, os estudiosos da pré-história geralmente reconhecem agora as descobertas de Morgan, ou melhor, apoderam-se desses conhecimentos. Mas quase nenhum deles reconhece francamente que é a Morgan que devemos esta revolução do pensamento. Sempre que possível, silenciam sobre o livro, e quanto ao próprio Morgan limitam-se a dirigir condescendentes elogios aos seus trabalhos anteriores; esmiúçam com zelo pequenos detalhes da sua exposição, mas omitem obstinadamente qualquer referência às suas descobertas realmente importantes.
A primeira edição da Ancient Society está esgotada; na América, vendem-se mal as publicações desse tipo; na Inglaterra, parece que a publicação desse livro foi sabotada sistematicamente, e a única edição à venda desta obra que marca realmente uma época é a tradução alemã.
Porquê essa reserva, na qual é difícil não perceber uma conspiração de silêncio, sobretudo se se têm em conta as inúmeras citações feitas por simples cortesia e outras provas de camaradagem, tão freqüentes nos trabalhos dos nossos notáveis pesquisadores da pré-história? Será talvez porque Morgan é americano e se torna muito duro para os historiadores ingleses, apesar do zelo muito meritório com que copiam documentos, terem de depender de dois estrangeiros geniais, como Bachofen e Morgan, quanto aos pontos de vista gerais indispensáveis para ordenar e agrupar esses documentos, numa palavra, quanto às suas idéias? O alemão ainda podia ser tolerado, mas o americano! Em presença de um americano, acendem-se os brios patrióticos de todo o inglês; vi, nos Estados Unidos, exemplos interessantíssimos. Acrescente-se a isso que Mac Lennan foi, de certo modo, proclamado oficialmente fundador e chefe da escola pré-histórica inglesa; que, até certo ponto, se considerava de bom-tom na pré-história falar da sua teoria histórica, artificialmente construída, com o mais profundo respeito; ela ia desde o infanticídio até à família de direito materno, passando pela poliandria e pelo matrimônio por rapto. Era considerado grave sacrilégio manifestar a menor dúvida acerca da existência de “tribos” exógamas e endógamas, que se excluíam, absolutamente, umas às outras; portanto, Morgan, ao dissipar como fumo todos esses dogmas consagrados, cometeu uma espécie de sacrilégio. Além disso, destruía esses dogmas com argumentos cuja simples exposição obrigava todo o mundo a admiti-los como evidentes. E os admiradores de Mac Lennan, que até então vacilavam, perplexos, entre a exogamia e a endogamia, sem saberem que caminho tomar, quase se viram obrigados a bater na testa e exclamar: “Como pudemos ser tão estúpidos que não descobrimos tudo isso nós próprios há muito tempo?”
E como se tantos crimes ainda não bastassem para que a escola oficial voltasse friamente as costas a Morgan, este fez transbordar o copo, não somente criticando, de um modo que lembra Fourier, a civilização e a sociedade da produção mercantil, forma fundamental da sociedade dos nossos dias, como também falando de uma transformação dessa sociedade em termos que podiam ter saído dos lábios de Karl Marx. Ele recebeu o que merecia, quando Mac Lennan indignadamente o acusou por ter “uma profunda antipatia pelo método histórico”, e quando o professor Giraud-Teulon endossou essa opinião, em Genebra, em 1884. E, no entanto, o mesmo senhor Giraud-Teulon errava impotentemente em 1874 (Origens da Família) pelo labirinto da exogamia de Mac Lennan, do qual só Morgan o libertaria! Não é necessário detalhar aqui os demais progressos que a pré-história deve a Morgan; no curso deste trabalho, encontrar-se-á o que é necessário saber sobre o assunto. Os catorze anos transcorridos desde o aparecimento da sua obra principal aumentaram bastante o acervo dos nossos dados históricos sobre as sociedades humanas primitivas. Aos antropólogos, exploradores e pesquisadores profissionais da pré-história, juntaram-se estudiosos do direito comparado, que forneceram novos dados e expressaram novos pontos de vista. Com isso, algumas hipóteses de Morgan estremeceram e até caducaram. Os novos dados, porém, não substituíram em parte alguma as suas idéias principais por outras. A ordem por ele introduzida na história primitiva subsiste ainda na sua essência. Pode-se mesmo dizer que essa ordem está a ser universalmente reconhecida na mesma medida em que se procura ocultar quem é o autor desse grande progresso (2) .
Friedrich Engels
Londres, 16 de junho de 1891
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(1) Ancient Society, or Researches in the lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization por Lewis H. Morgan, Londres, Mac Millan and Co. 1877. Este livro foi impresso na América e é muito difícil encontra-lo em Londres. O autor morreu há alguns anos. (Nota de Engels)
(2) Ao regressar de Nova York, em setembro de 1888, travei relações com um ex-deputado pela circunscrição de Rochester, o qual tinha conhecido Lewis Morgan. Infelizmente, não soube contar-me grande coisa sobre ele. Morgan vivera em Rochester, dedicando-se exclusivamente aos seus estudos. Um seu irmão tinha sido coronel e ocupara um posto no Ministério da Guerra em Washington; por intermédio desse irmão, conseguira que o governo se interessasse pelas suas pesquisas e fizesse publicar várias das suas obras a expensas do erário público. O meu interlocutor também o havia ajudado, por diversas vezes, quando exercia o seu mandato no Congresso. (Nota de Engels)
(Continuação)
I
ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DA CULTURA
Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na pré-história da humanidade, e a sua classificação permanecerá certamente em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerável nos obrigue a modifica-la.
Das três épocas principais – estado selvagem, barbárie e civilização – ele só se ocupa, naturalmente, das duas primeiras e da transição para a terceira. Subdivide cada uma das duas nas fases inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produção dos meios de existência; porque, diz, “a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de superioridade e domínio do homem sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um domínio quase absoluto da produção de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade coincidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência”. O desenvolvimento da família realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão conclusivos para a delimitação dos períodos.
A) ESTADO SELVAGEM
1 – Fase inferior
Infância do gênero humano. Os homens permaneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores; só isso explica que continuassem a existir no meio das grandes feras selvagens. Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimentos; o principal progresso desse período é a formação da linguagem articulada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico estava nessa fase primitiva de evolução. E, embora esse período tenha durado, provavelmente, muitos milênios, não podemos demonstrar a sua existência baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitirmos que o homem procede do reino animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado transitório.
2 – Fase média
Começa com o emprego dos peixes (incluímos aqui também os crustáceos, moluscos e outros animais aquáticos) na alimentação e com o uso do fogo. Os dois fenômenos são complementares, porque o peixe só pode ser plenamente empregado como alimento graças ao fogo. Com esta nova alimentação, porém, os homens fizeram-se independentes do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas dos mares, puderam, ainda no estado selvagem, espalhar-se sobre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos instrumentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra, conhecidos com o nome de paleolíticos, pertencem todos, ou, pelo menos a sua maioria, a esse período e encontram-se espalhados por todos os continentes, constituindo uma prova dessas migrações. O povoamento de novos lugares e o incessante afã de novos descobrimentos, ligados à posse do fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos, como as raízes e os tubérculos farináceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chão, e também a caça, que, com a invenção das primeiras armas – a clava e a lança – chegou a ser um alimento suplementar ocasional. Povos exclusivamente caçadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos que tenham vivido apenas da caça, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problemáticos. Como conseqüência da incerteza quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa época, a antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda nos nossos dias, os australianos e diversos polinésios.
3 – Fase superior
Começa com a invenção do arco e da flecha, graças aos quais os animais caçados vêm a ser um alimento regular e a caça uma das ocupações normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta já constituíam um instrumento bastante complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência acumulada e faculdades mentais desenvolvidas, bem como o conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se compararmos os povos que conhecem o arco e a flecha, mas ignoram a arte da cerâmica (com a qual, segundo Morgan, começa a passagem à barbárie), encontramos já alguns indícios de residência fixa em aldeias e certa habilidade na produção de meios de subsistência, vasos e utensílios de madeira, o tecido à mão (sem tear) com fibras de cortiça, cestos de cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida (neolíticos). Na maioria dos casos, o fogo e o machado de pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só tronco de árvore e, em certas regiões, a feitura de pranchas e vigas necessárias à edificação de casas. Todos esses progressos são encontrados, por exemplo, entre os índios do noroeste da América, que conheciam o arco e a flecha, mas não a cerâmica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para a civilização: a arma decisiva.
B) A BARBÁRIE
1 – Fase inferior
Inicia-se com a introdução da cerâmica. É possível demonstrar que, em muitos casos, provavelmente em todos os lugares, nasceu o costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a fim de torna-los refratários ao fogo; logo se descobriu que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvolvimento como um fenômeno absolutamente geral, válido em determinado período para todos os povos, sem distinção de lugar. Mas, com a barbárie, chegamos a uma época em que se começa a fazer sentir a diferença de condições naturais entre os dois grandes continentes. O traço característico do período da barbárie é a domesticação e criação de animais e o cultivo de plantas. Pois bem: o continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesticáveis e todos os cereais próprios para o cultivo, exceto um; o continente ocidental, a América, só tinha um mamífero domesticável, a lhama – e, mesmo assim, apenas numa parte do sul – e um só dos cereais cultiváveis, mas o melhor, o milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento a população de cada hemisfério desenvolve-se de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre as várias fases são diferentes em cada um dos dois casos.
2 – Fase média
No Leste, começa com a domesticação de animais; no Oeste, com o cultivo de hortaliças por meio de irrigação e com o emprego do tijolo cru (secado ao sol) e da pedra nas construções.
Comecemos pelo Oeste, porque, nessa região, essa fase não tinha sido superada, em parte alguma, até à conquista da América pelos europeus.
Entre os índios da fase inferior da barbárie (figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi) existia, já na época do seu descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e de outras plantas de horta, que constituíam parte muito essencial da sua alimentação; eles viviam em casas de madeira, em aldeias protegidas por paliçadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Colúmbia, achavam-se, ainda, na fase superior do estado selvagem e não conheciam a cerâmica nem o mais simples cultivo de plantas. Ao contrário, os índios dos chamados “pueblos” no Novo México, os mexicanos, os centro-americanos e os peruanos da época da conquista, encontravam-se na fase média da barbárie; viviam em casas de adobe ou pedra em forma de fortaleza; cultivavam em plantações artificialmente irrigadas o milho e outros vegetais comestíveis, diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de alimentação; e tinham até domesticado alguns animais; os mexicanos, o peru e outras aves; os peruanos, a lhama. Sabiam, além disso, trabalhar os metais, exceto o ferro; por isso ainda não podiam prescindir das suas armas e instrumentos de pedra. A conquista espanhola cortou completamente todo o desenvolvimento autônomo ulterior.
No Leste, a fase média da barbárie começou com a domesticação dos animais para o fornecimento de leite e carne, enquanto que, segundo parece, o cultivo das plantas permaneceu desconhecido ali durante muito tempo. A domesticação de animais, a criação de gado e a formação de grandes rebanhos parecem ter sido a causa do afastamento dos arianos e semitas em relação aos demais bárbaros. Os nomes com que os arianos da Europa e os da Ásia designam os animais ainda são comuns, mas os nomes com que designam as plantas cultivadas são quase sempre diferentes.
A formação de rebanhos levou, nos lugares adequados, à vida pastoril; os semitas, nas pradarias do Tibre e do Eufrates; os arianos, nos campos da Índia, de Oxus e Jaxartes, do Don e do Dnieper. Assim, foi nessas terras ricas em pastos que, pela primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece às gerações posteriores que os povos pastores procediam de áreas que, na realidade, longe de terem sido o berço do gênero humano, eram quase inabitáveis para os seus selvagens avós e até para os homens da fase inferior da barbárie. E, ao contrário, desde que esses bárbaros da fase média se habituaram à vida pastoril, jamais lhes ocorreria a idéia de abandonarem voluntariamente as pradarias próximas dos rios e de voltarem aos territórios selváticos onde viviam os seus antepassados. Nem mesmo quando foram impelidos para o Norte e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos retirar-se para as regiões florestais do Oeste da Ásia e da Europa antes que o cultivo de cereais, neste solo menos favorável, lhes permitisse alimentar os seus rebanhos, sobretudo no inverno. É mais do que provável que o cultivo de cereais tivesse nascido aqui, primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que só mais tarde tivesse importância para a alimentação do homem.
Talvez a evolução superior dos arianos e dos semitas se deva à abundância de carne e leite na sua alimentação e, particularmente, pela benéfica influência desses alimentos no desenvolvimento das crianças. Com efeito, os índios “pueblos” do Novo México, que se vêem reduzidos a uma alimentação quase exclusivamente vegetal, têm o cérebro menor que o dos índios da fase inferior da barbárie, que comem mais carne e mais peixe. Em todo caso, nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que só sobrevive como um rito religioso, ou como um sortilégio, o que dá quase no mesmo.
3 – Fase superior
Inicia-se com a fundição do minério de ferro, e passe à fase da civilização com a invenção da escrita alfabética e seu emprego para registros literários. Esta fase que, como dissemos, só existiu de maneira independente no hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos processos da produção. A ela pertencem os gregos da época heróica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de Roma, os germanos de Tácito, os normandos do tempo dos vikings.
Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez, o arado de ferro puxado por animais, o que torna possível lavrar a terra em grande escala – a agricultura – e produz, dentro das condições então existentes, um aumento praticamente quase limitado dos meios de existência; a par disso, encontramos também a transformação dos bosques em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível em grande escala sem a pá e o machado de ferro. Tudo isso acarretou um rápido aumento da população, que se instala, densamente, em pequenas áreas. Antes do cultivo dos campos, somente circunstâncias excepcionais teriam podido reunir meio milhão de homens sob uma direção central – e é de crer que isso jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada, encontramos a época mais florescente da fase superior da barbárie. A principal herança que os gregos levaram da barbárie para a civilização consiste nos instrumentos de ferro aperfeiçoados, nos foles de forja, no moinho à mão, na roda de olaria, na preparação do azeite e do vinho, no trabalho de metais elevado à categoria de arte, nas carretas e carros de guerra, construção de barcos com pranchas e vigas, nos princípios da arquitetura como uma arte, cidades amuralhadas com torres e ameias, nas epopéias homéricas e em toda a mitologia. Se compararmos com isso as descrições feitas por César, e até por Tácito, dos germanos que se achavam nos umbrais da fase de cultura da qual de Homero se dispunham a passar para um estádio mais elevado, veremos como foi esplêndido o desenvolvimento da produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da humanidade através do estado selvagem e da barbárie, até aos começos da civilização – quadro que acabo de esboçar, seguindo Morgan – já é bastante rico em traços característicos novos e, sobretudo, indiscutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No entanto, parecerá obscuro e incompleto se o compararmos com aquele que se há de descortinar diante de nós, no fim da nossa viagem; só então será possível apresentar com toda a clareza a passagem da barbárie à civilização e o forte contraste entre as duas. Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte: Estado Selvagem – Período em que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para serem utilizados; as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie – Período em que aparecem a criação de gado e a agricultura por meio do trabalho humano. Civilização – Período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.
(Continuação)
II
A FAMÍLIA
Morgan, que passou a maior parte da sua vida entre os iroqueses – ainda hoje estabelecidos no Estado de Nova York – e foi adotado por uma das suas tribos ( a dos senekas), encontrou um sistema de consangüinidade, vigente entre eles, que entrava em contradição com os seus reais vínculos de família. Reinava ali aquela espécie de matrimônio facilmente dissolúvel por ambas as partes, a que Morgan chamava “família sindiásmica”. A descendência de semelhante casal era patente e reconhecida por todos; nenhuma dúvida podia surgir quanto às pessoas a quem se aplicavam os nomes de pai, mãe, filho, filha, irmão ou irmã. Mas, o uso atual destes nomes constituía uma contradição. O iroquês não somente chama filhos e filhas aos seus próprios, mas, ainda, aos dos seus irmãos, os quais, por sua vez, lhe chamam pai. Os filhos da suas irmãs, pelo contrário, são tratados por ele como sobrinhos e sobrinhas, os quais o tratam por tio. Inversamente, a iroquesa chama filhos e filhas aos das suas irmãs. da mesma forma que os próprios, e aqueles, como estes, chamam-lhe mãe. Mas chama sobrinhos e sobrinhas aos filhos dos seus irmãos, os quais a tratam por tia. Do mesmo modo, os filhos de irmãos tratam-se entre si, por irmãos e irmãs, sucedendo o mesmo com os filhos de irmãs. Os filhos de uma mulher e os de seu irmãos tratam-se reciprocamente por primos e primas. E não são simples nomes, mas a expressão das idéias que se tem do próximo e do distante, do igual ou do desigual no parentesco consangüíneo; idéias que servem de base a um sistema de parentesco inteiramente elaborado e capaz de expressar muitas centenas de diferentes relações de parentesco de um único indivíduo. Mais ainda: esse sistema encontra-se em vigor não apenas entre todos os índios da América (até agora não foram encontradas exceções), como também existe, quase sem nenhuma modificação, entre os aborígines da Índia, as tribos dravidianas do Dekan e as tribos gauras do Industão. As expressões de parentesco dos tamilas do sul da Índia e dos senekas-iroqueses do Estado de Nova York ainda hoje coincidem em mais de duzentas relações de parentesco diferentes. E, nessas tribos da Índia, como entre os índios da América, as relações de parentesco resultantes da vigente forma de família estão em contradição com o sistema de parentesco.
Como explicar esse fenômeno? Se tomarmos em consideração o papel decisivo da consangüinidade no regime social de todos os povos selvagens e bárbaros, a importância de tão difundido sistema não pode ser explicada com mero palavreado. Um sistema que prevalece em toda a América, que existe na Ásia em povos de raças completamente diferentes, e do qual se encontram formas mais ou menos modificadas por toda a parte na África e na Austrália, tem que ser explicado historicamente – e não com frases ocas, como quis fazer, por exemplo, Mac Lennan. As designações “pai”, “filho”, “irmão”, “irmã”, não são simples títulos honoríficos, mas ao contrário, implicam sérios deveres recíprocos, perfeitamente definidos, e cujo conjunto forma uma parte essencial do regime social desses povos. E a explicação foi encontrada. Nas ilhas Sandwich (Havaí), ainda havia, na primeira metade deste século, uma forma de família em que existiam pais e mães, irmãos e irmãs, filhos e filhas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas do sistema de parentesco dos índios americanos e dos aborígines da Índia. Mas – coisa estranha! – o sistema de parentesco em vigor no Havaí também não correspondia à forma de família ali existente. Nesse país, todos os filhos e irmãos e irmãs, sem exceção, são irmãos e irmãs entre si e são considerados filhos comuns, não só da sua mãe e das irmãs dela, ou do seu pai e dos irmãos dele, mas também de todos os irmãos e irmãs de seus pais e de suas mães, sem distinção. Portanto, se o sistema americano de parentesco pressupõe uma forma de família mais primitiva – que não existe mais na América, mas que ainda encontramos no Havaí – o sistema havaiano, por seu lado, indica-nos uma forma de família ainda mais rudimentar, que, se bem que não seja encontrada hoje em parte alguma, deve ter existido, pois, de contrário, não poderia ter nascido o sistema de parentesco que a ela corresponde. “A família”, diz Morgan, “é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentesco, pelo contrário, são passivos; só depois de longos intervalos, registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou radicalmente.” Karl Marx acrescenta: “O mesmo acontece, em geral, com os sistemas políticos, jurídicos, religiosos e filosóficos”. Ao passo que a família prossegue vivendo, o sistema de parentesco fossiliza-se; e enquanto este continua de pé pela força do costume, a família ultrapassa-º Contudo, pelo sistema de parentesco que chegou historicamente até aos nossos dias, podemos concluir que existiu uma forma de família a ele correspondente, já extinta, e podemos tirar esta conclusão com a mesma segurança com que Cuvier, pelos ossos do esqueleto de um animal achados perto de Paris, pôde concluir que pertenciam a um marsupial e que os marsupiais, agora extintos, viveram ali antigamente.
Os sistemas de parentesco e formas de família, a que nos referimos, diferem dos atuais no seguinte: cada filho tinha vários pais e mães. No sistema americano de parentesco, ao qual corresponde a família havaiana, um irmão e uma irmã não podem ser pai e mãe de um mesmo filho; o sistema de parentesco havaiano, pelo contrário, pressupõe uma família em que esta é a regra. Encontramo-nos frente a uma série de formas de família que estão em contradição direta com as consideradas até hoje como únicas válidas. A concepção tradicional conhece apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez da poliandria de uma mulher, silenciando – como convém ao filisteu moralizante – sobre o fato de que na prática aquelas barreiras impostas pela sociedade oficial são tácita e inescrupulosamente transgredidas. O estudo da história primitiva revela-nos, ao invés disto, um estado de coisas em que os homens praticam a poligamia e as suas mulheres a poliandria, e em que, por conseqüência, os filhos de uns e outros tinham que ser considerados comuns. É esse estado de coisas, por seu lado, que, passando por uma série de transformações, resulta na monogamia. Essas modificações são de tal ordem que o círculo compreendido na união conjugal comum, e que era muito amplo na sua origem, se estreita pouco a pouco até que, por fim, abrange exclusivamente o casal isolado, que predomina hoje.
Reconstituindo retrospectivamente a história da família, Morgan chega, de acordo com a maioria dos seus colegas, à conclusão de que existiu uma época em que imperava, no seio da tribo, o comércio sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres. No século passado, já se havia feito menção a esse estado primitivo, mas apenas de modo geral; Bachofen foi o primeiro – e este é um dos seus maiores méritos – que o levou a sério e procurou os seus vestígios nas tradições históricas e religiosas. Sabemos hoje que os vestígios descobertos por ele não conduzem a nenhum estado social de promiscuidade dos sexos e sim a uma forma muito posterior: o matrimônio por grupos. Aquele estado social primitivo, admitindo-se que tenha realmente existido, pertence a uma época tão remota que não podemos esperar encontrar provas diretas da sua existência, nem mesmo entre os fósseis sociais, nos selvagens mais atrasados. Cabe precisamente a Bachofen o mérito de ter posto no primeiro plano o estudo dessa questão. (1)
Ultimamente, passou a ser moda negar esse período inicial na vida sexual do homem. Pretendem poupar à humanidade essa “vergonha”. E, para isso, apóiam-se não apenas na falta de provas diretas, mas, principalmente, no exemplo do resto do reino animal. Neste, Letourneau (A Evolução do Matrimônio e da Família, 1888) foi buscar numerosos fatos, de acordo com os quais a promiscuidade sexual completa só é própria das espécies mais inferiores. Mas, de todos esses fatos, só posso tirar uma conclusão: não provam coisa alguma quanto ao homem e suas primitivas condições de existência. A união por longo tempo entre os vertebrados pode ser explicada, de modo cabal, por motivos fisiológicos; nas aves, por exemplo, deve-se à necessidade de proteção à fêmea enquanto esta choca os ovos; os exemplos de fiel monogamia que se encontram entre as aves nada provam quanto ao homem, pois o homem não descende da ave. E, se a estrita monogamia é o ápice da virtude, então a palma deve ser dada à tênia solitária que, em cada um dos seus cinqüenta a duzentos anéis, possui um aparelho sexual masculino e feminino completo, e passa a vida inteira coabitando consigo mesma em cada um desses anéis reprodutores.
Mas, se nos limitarmos aos mamíferos, neles encontramos todas as formas de vida sexual: a promiscuidade, a união por grupos, a poligamia, a monogamia; só falta a poliandria, à qual apenas os seres humanos podiam chegar. Mesmo os nossos parentes mais próximos, os quadrúmanos, apresentam todas as variedades possíveis de ligação entre machos e fêmeas; e se nos restringirmos a limites ainda mais estreitos, considerando exclusivamente as quatro espécies de macacos antropomorfos, deles Letourneau só nos pode dizer que vivem ora na monogamia ora na poligamia; ao passo que Saussure, segundo Giraud-Teulon, declara que são monógamos. Ficam longe de qualquer prova, também, as recentes afirmações de Westermarck (A História do Matrimônio Humano, 1891) sobre a monogamia do macaco antropomorfo. Em resumo, os dados são de tal ordem que o honrado Letourneau está de acordo em que “não há nos mamíferos relação alguma entre o grau de desenvolvimento intelectual e a forma de união sexual”. E Espinas (As Sociedades Animais, 1877) diz, com franqueza: “A horda é o mais elevado dos grupos sociais que pudemos observar nos animais. Parece composta de famílias, mas, já em sua origem, a família e a horda são antagônicas, desenvolvem-se em razão inversa uma da outra”.
Pelo que acabamos de ver, nada de positivo sabemos sobre a família e outros agrupamentos sociais dos macacos antropomorfos; os dados que possuímos contradizem-se frontalmente e não há por que estranha-lo. Como são contraditórias, e necessitadas de serem examinadas e comprovadas criticamente, as notícias que temos das tribos humanas no estado selvagem! Pois bem, as sociedades dos macacos são muito mais difíceis de observar que as dos homens. Por isso, enquanto não dispusermos de uma informação ampla, devemos recusar qualquer conclusão proveniente de dados que não inspirem crédito.
Entretanto, o trecho de Espinas que citamos dá-nos melhor ponto de apoio para a investigação. A horda e a família, nos animais superiores, não são completamente recíprocos e sim fenômenos antagônicos. Espinas descreve bem de que modo o ciúme dos machos no período do cio relaxa ou suprime momentaneamente os laços sociais da horda. “Onde a família está intimamente unida, não vemos formarem-se hordas, salvo raras exceções. Pelo contrário, as hordas constituem-se quase naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a poligamia. . . Para que surja a horda, é necessário que os laços familiares se tenham relaxado e o indivíduo tenha recobrado a sua liberdade. É por isso que só raramente encontramos bandos organizados entre os pássaros. . . Por outro lado, é nos mamíferos que vamos encontrar sociedades mais ou menos organizadas, justamente porque o indivíduo neste caso não é absorvido pela família. . . Assim, pois, a consciência coletiva da horda não pode ter na sua origem um inimigo maior do que a consciência coletiva da família. Não hesitamos em dize-lo: se se desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi devido somente ao fato de que a ela se incorporaram famílias profundamente alteradas, conquanto isso não exclua a possibilidade de que, precisamente por este motivo, aquelas famílias possam mais adiante reconstituir-se sob condições infinitamente mais favoráveis”. (Espinas, cap. 1, citado por Giraud-Teulon em Origens do Matrimônio e da Família, 1884, págs. 518-520).
Como vemos, as sociedades animais têm um certo valor para tirarmos conclusões concernentes às sociedades humanas, mas somente num sentido negativo. Pelo que sabemos, o vertebrado superior apenas conhece duas formas de família: a poligâmica e a monogâmica. Em ambos os casos só se admite um macho adulto, um marido. Os ciúmes do macho, a um só tempo laço e limite da família, opõem-na à horda; a horda, forma social mais elevada, torna-se impossível em certas ocasiões, e em outras, relaxa-se ou dissolve-se durante o período do cio; na melhor das hipóteses, o seu desenvolvimento vê-se contido pelos ciúmes dos machos. Isso é suficiente para provar que a família animal e a sociedade humana primitiva são coisas incompatíveis; que os homens primitivos, na época em que lutavam por sair da animalidade, ou não tinham nenhuma noção de família ou, quando muito, conheciam uma forma não encontrada entre animais. Um animal tão sem meios de defesa como aquele que se estava a tornar homem pôde sobreviver em pequeno número, inclusive numa situação de isolamento, em que a forma de sociabilidade mais evoluída era o casal, forma que Westmarck, baseando-se em informações de caçadores, atribui ao gorila e ao chimpanzé. Mas, para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era preciso mais um elemento: substituir a falta de poder defensivo do homem isolado pela união de forças e pela ação comum da horda. Partindo das condições conhecidas em que vivem hoje os macacos antropomorfos, seria simplesmente inexplicável a passagem à humanidade; estes macacos dão-nos mais a impressão de linhas colaterais desviadas e em vias de extinguir-se, e que, no mínimo, se encontram em processo de decadência. Isso basta para se rechaçar todo o paralelo entre as suas formas de família e as do homem primitivo.
A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira condição para que se pudessem formar estes grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformação do animal em homem. E, com efeito, que encontrarmos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja existência indubitável nos demonstra a História, e que ainda hoje podemos estudar em certos lugares? O matrimônio por grupos, a forma de casamento em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres, se pertencem mutuamente, deixando bem pouca margem para os ciúmes. Além disso, numa fase posterior de desenvolvimento, encontrarmos a poliandria, forma excepcional, que exclui, em medida ainda maior, os ciúmes, e que, por isso, é desconhecida entre os animais. Todavia, como as formas de matrimônio por grupos que conhecemos são acompanhados de condições tão peculiarmente complicadas que nos indicam, necessariamente, a existência de formas anteriores mais simples de relações sexuais e assim, em última análise, um período de promiscuidade correspondente à passagem da animalidade à humanidade – as referências aos matrimônios animais conduzem-nos, de novo, ao mesmo ponto de onde devíamos ter partido de uma vez para sempre.
Que significam relações sexuais sem entraves? Significam que não existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações. Já vimos caírem as barreiras dos ciúmes. Se algo pôde ser estabelecido irrefutavelmente, foi que o ciúme é em sentimento que se desenvolveu relativamente tarde. O mesmo acontece com a idéia de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e mulher, como também ainda hoje, em muitos povos, é lícito o comércio sexual entre pais e filhos. Bancroft (As Raças Nativas dos Estados da Costa do Pacífico na América do Norte, 1875, tomo I) testemunha a existência destas relações entre os kaviatos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os tinnehs do interior da América do Norte inglesa; Letourneau reuniu numerosos fatos idênticos entre os índios chipevas, os kukus do Chile, os caribes, os karens da Indochina; e isso deixando de lado o que contam os antigos gregos e romanos a respeito dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos, etc. Antes da invenção do incesto (porque é uma invenção e das ais valiosas), o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais repugnante do que entre outras pessoas de gerações diferentes, coisa que ocorre nos nossos dias até nos países mais católicos, sem produzir grande horror. Velhas “donzelas” de mais de setenta anos casam-se, se não bastante ricas, com jovens de uns trinta anos. Mas, se despojarmos as formas de família mais primitivas que conhecemos das concepções de incesto que lhes correspondem (concepções completamente diferentes das nossas e muitas vezes em contradição direta com elas), chegaremos a uma forma de relações carnais que só pode ser chamada de promiscuidade sexual, no sentido de que ainda não existiam as restrições impostas mais tarde pelo costume. Mas disto não se deduz, de modo algum, que na prática quotidiana imperasse inevitavelmente a promiscuidade. As uniões temporárias por pares não ficam excluídas, em absoluto, e ocorrem, na maioria dos casos, mesmo no matrimônio por grupos.
E se Westermarck, o último a negar este estado primitivo, dá o nome de matrimônio a todo o caso em que os dois sexos convivem até ao nascimento de um pimpolho, pode-se dizer que tal matrimônio podia muito bem verificar-se nas condições da promiscuidade sexual sem contradize-la em nada, isto é, sem contradizer a inexistência de barreiras impostas pelo costume às relações sexuais. É verdade que Westermarck parte do ponto de vista de que “a promiscuidade supõe a supressão das inclinações individuais”, de tal sorte que “a sua forma por excelência é a prostituição”. Parece-me, ao contrário, que será impossível formar a menor idéia das condições primitivas enquanto elas forem observadas através da janela de um lupanar. Voltaremos a falar desse assunto quando tratarmos do matrimônio por grupos.
Segundo Morgan, deste estado primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se:
1 – A família consangüínea
A primeira etapa da família. Nela, os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs e avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entres si; o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais e mães; os filhos destes, p or sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e os seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto círculo. Nesta forma de família, os ascendentes e descendentes, os pais e os filhos, são os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer) do matrimônio. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus, são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua (2).
Exemplo típico de tal família seriam os descendentes de um casal, em cada uma de cujas gerações sucessivas todos fossem entre si irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros.
A família consangüínea desapareceu. Nem mesmo os povos mais atrasados de que fala a história apresentam qualquer exemplo seguro dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é o sistema de parentesco havaiano, ainda vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de parentesco consangüíneo que só puderam surgir com essa forma de família; e somos levados à mesma conclusão por todo o desenvolvimento ulterior da família, que pressupõe essa forma como estágio preliminar necessário.
2 – A família punaluana
Se o primeiro progresso na organização da família consiste em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas, o segundo foi a exclusão dos irmãos. Esse progresso foi infinitamente mais importante que o primeiro e, também, mais difícil, dada a maior igualdade nas idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos (isto é, irmãos por parte da mãe), a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como regra geral (no Havaí ainda havia exceções no presente século) e acabando pela proibição do matrimônio até entre irmãos colaterais (quer dizer, segundo os nossos atuais nomes de parentesco, entre primos carnais, primos em segundo e terceiro graus). Segundo Morgan, esse progresso constitui “uma magnífica ilustração de como atua o princípio da seleção natural”. Sem dúvida, nas tribos onde este progresso limitou a reprodução consangüínea, deve ter havido um progresso mais rápido e mais completo que naquelas onde o matrimônio entre irmãos e irmãs continuou a ser uma regra e uma obrigação. Até que ponto se fez sentir a ação desse progresso demonstra-o a instituição da gens, nascida diretamente dele e que ultrapassou em muito os seus fins iniciais. A gens formou a base da ordem social da maioria, senão da totalidade, dos povos bárbaros do mundo, e dela passamos, na Grécia e em Roma, sem transições, à civilização.
Cada família primitiva teve que cindir-se, o mais tardar depois de algumas gerações. A economia doméstica do comunismo primitivo, que domina exclusivamente ainda grande parte da fase média da barbárie, prescrevia uma extensão máxima da comunidade familiar, variável segundo as circunstâncias, porém, mais ou menos determinada em cada localidade. Mas, apenas surgida a idéia da impropriedade da união sexual entre filhos da mesma mãe, ela deve ter exercido a sua influência na cisão das velhas comunidades domésticas (Hausgemeinden) e na formação de outras novas comunidades, que não coincidiam necessariamente com o grupo de famílias. Um ou mais grupos de irmãs convertiam-se no núcleo de uma comunidade, e os seus irmãos carnais, no núcleo de outra. Da família consangüínea saiu, dessa ou de outra maneira análoga, a forma de família à qual Morgan dá o nome de família punaluana. De acordo com o costume havaiano, certo número de irmãs carnais ou mais afastadas (isto é, primas em primeiro, segundo e outros graus) eram mulheres comuns de maridos comuns, dos quais ficavam excluídos, entretanto, os seus próprios irmãos. Esses irmãos, por seu lado, não se chamavam entre si irmãos, pois já não tinham necessidade de sê-lo, mas “punalua”, quer dizer, companheiro íntimo, como quem diz “associé”. De igual modo, uma série de irmãos uterinos ou mais afastados tinham em casamento comum certo número de mulheres, com exclusão das suas próprias irmãs, e essas mulheres chamavam-se entre si “punalua”. Este é o tipo clássico de uma formação de família (Familien-formation) que sofreu, mais tarde, uma série de variações, e cujo traço característico essencial era a comunidade recíproca de maridos e mulheres no seio de um determinado círculo familiar, do qual foram excluídos, todavia, no princípio, os irmãos carnais e, mais tarde, também os irmãos mais afastados das mulheres, ocorrendo o mesmo com as irmãs dos maridos.
Esta forma de família indica-nos agora, com a mais perfeita exatidão, os graus de parentesco, tal como os expressa o sistema americano. Os filhos das irmãs de minha mãe são também filhos desta, assim como os filhos dos irmãos de meu pai o são também deste; e todos eles são meus irmãos e irmãs. Mas os filhos dos irmãos de minha mãe são sobrinhos e sobrinhas desta, assim como os filhos das irmãs de meu pai são sobrinhos e sobrinhas deste; e todos são meus primos e primas. Com efeito, enquanto os maridos das irmãs de minha mãe são também maridos desta e, igualmente, as mulheres dos irmãos de meu pai são também mulheres deste – de direito, se nem sempre de fato – a proibição das relações sexuais entre irmãos e irmãs pela sociedade levou à divisão dos filhos de irmãos e irmãs, até então indistintamente considerados irmãos e irmãs, em duas classes: uns continuam a ser, como antes, irmãos e irmãs (colaterais); outros – de um lado os filhos dos irmãos, do outro os filhos das irmãs – não podem continuar como irmãos e irmãs, já não podem ter progenitores comuns, nem o pai , nem a mãe, nem os dois juntos; e por isso torna-se necessária, pela primeira vez, a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e primas. O sistema de parentesco americano, que parece inteiramente absurdo em qualquer forma de família que, de um ou outro modo, se baseia na monogamia, explica-se de maneira racional e justifica-se, naturalmente, até nos seus mais pequenos pormenores, pela família punaluana. A família punaluana, ou qualquer forma análoga, deve ter existido pelo menos na mesma medida em que prevaleceu este sistema de parentesco.
Essa forma de família, cuja existência no Havaí está demonstrada, teria sido também demonstrada provavelmente em toda a Polinésia se os piedosos missionários, tal como no passado os frades espanhóis na América, tivessem podido ver nessas relações anticristãs algo mais que uma simples “abominação” (3). Quando César nos diz dos bretões – os quais, naquele tempo, estavam na fase média da barbárie – que “cada dez ou doze homens têm mulheres comuns, com a particularidade de, na maioria dos casos, serem irmãos e irmãs, e pais e filhos”, a melhor explicação que se pode dar para isso é o matrimônio por grupos. As mães bárbaras não têm dez ou doze filhos em idade de manter mulheres comuns; mas o sistema americano de parentesco, que corresponde à família punaluana, dá origem a um grande número de irmãos, posto que todos os primos carnais ou remotos de um homem são seus irmãos. É possível que a expressão “pais com seus filhos” seja um equívoco de César; esse sistema, entretanto, não exclui absolutamente que se encontrem num mesmo grupo conjugal pai e filho, mãe e filha, mas apenas que nele se encontrem pai e filha, mãe e filho. Essa forma de família fornece-nos, também, a explicação mais simples para os relatos de Heródoto e de outros escritores antigos sobre a comunidade de mulheres entre os povos selvagens e bárbaros.
O mesmo se pode dizer do que Watson e Kaye contam acerca dos tikus do Audh, ao norte do Ganges, no seu livro A População da Índia (1868/1872): “Coabitam (quer dizer, fazem vida sexual) quase sem distinção, em grandes comunidades; e quando dois indivíduos se consideram marido e mulher, o vínculo que os une é puramente nominal”.
Na imensa maioria dos casos, a instituição da gens parece ter saído diretamente da família punaluana. É certo que o sistema de classes australianos também representa um ponto de partida para a gens; os australianos têm a gens, mas ainda não têm a família punaluana, e sim uma forma mais primitiva de grupo conjugal.
Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe. Ainda que ele chame filhos seus a todos os da família comum, e tenha deveres maternais para com eles, nem por isso deixa de distinguir seus próprios filhos entre os demais. É claro, portanto, que em toda parte onde existe o matrimônio por grupos a descendência só pode ser estabelecida do lado materno, e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem feminina. Encontram-se nesse caso, de fato, todos os povos selvagens e todos os povos que se acham na fase inferior da barbárie; ter sido o primeiro a fazer essa descoberta foi a segunda grande façanha de Bachofen. Ele designa o reconhecimento exclusivo da filiação materna e as relações de herança dele deduzidas com o nome de direito materno. Conservo essa expressão por motivo de brevidade, mas ela é inexata, porque naquela fase da sociedade ainda não existia direito, no sentido jurídico da palavra.
Tomemos agora, na família punaluana, um dos dois grupos típicos concretamente, o de uma série de irmãs carnais e colaterais (isto é, descendentes de irmãs carnais em primeiro, segundo e outros graus), com seus filhos e seus irmãos carnais ou colaterais por linha materna (os quais, de acordo com nossa premissa, não são seus maridos), e teremos exatamente o círculo dos indivíduos que, mais adiante, aparecerão membros de uma gens, na forma primitiva desta instituição. Todos têm por tronco comum uma mãe e, em virtude dessa origem, os descem dentes femininos formam gerações de irmãs. Porém, os maridos de tais irmãs já não podem ser seus irmãos; logo, não podem descender daquele tronco materno e não pertencem a este grupo consangüíneo, que mais tarde chega a constituir a gens, embora seus filhos pertençam a tal grupo, pois a descendência por linha materna é a única decisiva, por ser a única certa. Uma vez proibidas as relações sexuais entre todos os irmãos e irmãs - inclusive os colaterais mais distantes – por linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa gens, isto é, constitui-se num círculo fechado de parentes consangüíneos por linha feminina, que não se podem casar uns com os outros; e, a partir de então, este círculo se consolida cada vez mais por meio de instituições comuns, de ordem social e religiosa, que o distingue das outras gens da mesma tribo. Adiante voltaremos, com maiores detalhes, a essa questão. Se considerarmos, contudo, que a gens surge da família punaluana, não só necessária mas naturalmente, teremos fundamento para considerar quase indubitável a existência anterior dessa forma de família em todos os povos em que podem ser comprovadas instituições gentílicas, isto é, em quase todos os povos bárbaros e civilizados.
Quando Morgan escreveu seu livro, nossos conhecimentos sobre o matrimônio por grupos eram muito limitados. Sabia-se de alguma coisa do matrimônio por grupos entre os australianos organizados em classes e, além disso, Morgan já havia publicado em 1871 todos os dados que possuía a respeito da família punaluana no Havaí. A família punaluana propiciava, por um lado, a explicação completa do sistema de parentesco vigente entre os índios americanos e que tinha sido o ponto de partida de todas as investigações de Morgan; por outro lado, era a base para a dedução da gens do direito materno; e, finalmente, era um grau de desenvolvimento muito mais alto que o das classes australianas. Compreende-se, pois, que Morgan a concebesse como estágio de desenvolvimento imediatamente anterior ao matrimônio sindiásmico e lhe atribuísse uma difusão geral nos tempos primitivos. Desde então, chegamos a conhecer outra série de formas de matrimônio por grupos, e agora sabemos que Morgan foi longe demais nesse ponto. No entanto, em sua família punaluana, ele teve a felicidade de encontrar a mais elevada, a clássica forma do matrimônio por grupos, a forma que explica de maneira mais simples a passagem a uma forma superior.
Se houve um considerável enriquecimento nas noções que temos do matrimônio por grupos, devemo-lo, sobretudo, ao missionário inglês Lorimer Fison, que, durante anos, estudou essa forma de família em sua terra clássica, a Austrália. Entre os negros australianos do monte Cambier, no sul da Austrália, foi onde encontrou o mais baixo grau de desenvolvimento. A tribo inteira divide-se, ali, em duas grandes classes: os krokis e os komites. São terminantemente proibidas as relações sexuais no seio de cada uma dessas classes; em compensação, todo homem de uma dessas classes é marido nato de toda mulher da outra, e reciprocamente. Não são os indivíduos, mas os grupos inteiros, que estão casados uns com os outros, classe com classe. E note-se que ali não há, em parte alguma, restrições por diferenças de idade ou de consangüinidade especial, salvo a determinada pela divisão em duas classes exógamas. Um kroki tem, de direito, por esposa, toda mulher komite; e, como sua própria filha, como filha de uma komite, é também komite, em virtude do direito materno, é, por causa disso, esposa nata de todo kroki, inclusive de seu pai. Em qualquer caso, a organização por classes, tal como se nos apresenta, não opõe a isto nenhum obstáculo. Assim, pois, ou essa organização apareceu em uma época em que, apesar da tendência instintiva de se limitar o incesto, não se via ainda qualquer mal nas relações sexuais entre filhos e pais - e, então, o sistema de classes deve ter nascido diretamente das condições do intercurso sexual sem restrições - ou, ao contrário, quando se criaram as classes, estavam já proibidas, pelo costume, as relações sexuais entre pais e filhos, e, então, a situação atual assinala a existência anterior da família consangüínea e constitui o primeiro passo dado para dela sair. Esta última hipótese é a mais verossímil. Que eu saiba, não se encontram exemplos de união conjugal entre pais e filhos na Austrália; e, além disso, a forma posterior da exogamia, a gens baseada no direito materno, pressupõe tacitamente a proibição desse comércio como coisa que havia sido já estabelecida antes do seu aparecimento.
O sistema das duas classes encontra-se não só na região do monte Gambier, ao sul da Austrália, mas, ainda, nas margens do rio Darling, mais a leste, e em Queensland, no nordeste, de modo que está bastante difundido. Este sistema apenas exclui os matrimônios entre irmãos e imãs, entre filhos de irmãos e entre filhos de irmãs por linha materna, porque estes pertencem à mesma classe; os filhos de irmão e irmã, ao contrário, podem casar-se uns com os outros. Um novo passo no sentido da proibição do casamento entre consangüíneos observamos entre os kamilarois, às margens do Darling, na Nova Gales do Sul, onde duas classes originárias se cindiram em quatro, e onde cada uma dessas quatro classes casa-se, inteira, com outra determinada. As duas primeiras classes são esposos natos, uma da outra; mas, segundo a mãe pertença à primeira ou à segunda, passam os filhos à terceira ou à quarta. Os filhos destas duas últimas classes, igualmente casadas uma com a outra, pertencem, de novo, à primeira e à segunda. De sorte que sempre uma geração pertence à primeira e à segunda classe, a geração seguinte, à terceira e à quarta, e a que vem imediatamente depois, de novo à primeira e à segunda classe. Do que se deduz que filhos de irmão e irmã (por linha materna) não podem ser marido e mulher, porém podem sê-lo os netos de irmão e irmã. Este tão complicado sistema enreda-se ainda mais, pois enxerta-se nele, mais tarde, a gens baseada no direito materno; nesse ponto, contudo, não podemos, aqui, entrar em minúcias. Observamos, pois, que a tendência para impedir o matrimônio entre consangüíneos manifesta-se aqui e ali, mas de maneira espontânea, em tentativas, sem ume, consciência clara dos fins objetivados.
O matrimônio por grupos, que, na Austrália, é também um matrimônio por classes, a união conjugal em massa de toda uma classe de homens, freqüentemente dispersa pelo continente inteiro, com toda uma classe de mulheres não menos dispersa, esse matrimônio por grupos, visto de perto, não é monstruoso como o figura a fantasia dos filisteus, acostumados à sociedade da prostituição. Ao contrário, transcorreram muitos anos antes de que se viesse a suspeitar de sua existência, a qual, na verdade, foi posta de novo em dúvida só muito recentemente. Aos olhos do observador superficial, parece uma monogamia de vínculos bastante frouxos e, em alguns lugares, uma poligamia acompanhada de infidelidade ocasional. É necessário consagrar-lhe anos de estudo, como fizeram Fison e Howitt, para descobrir nessas relações conjugais ( que na prática, recordam muito bem à generalidade dos europeu os costumes de suas pátrias) a lei em virtude da qual o negro australiano, a milhares de quilômetros de seu lar, nem por isso deixa de encontrar, entre gente cuja linguagem não compreende - e amiúde em cada acampamento, em cada tribo - mulheres que se lhe entregam voluntariamente, sem resistência; lei por força da qual quem tem várias mulheres cede uma a seu hóspede para ele passar a noite. Ali, onde o europeu vê imoralidade e ausência de qualquer lei, reina, de fato, uma lei rigorosa. As mulheres pertencem à classe conjugal do forasteiro e são, por conseguinte, suas esposas natas; a mesma lei moral que destina um a outro, proíbe, sob pena de infâmia, todo intercurso sexual fora das classes conjugais que se pertencem reciprocamente. Mesmo nos lugares onde se pratica o rapto das mulheres, que ocorre amiúde e em várias regiões é regra geral, a lei das classes é mantida escrupulosamente.
No rapto das mulheres, encontram-se, já, indícios da passagem à monogamia, pelo menos na forma de casamento sindiásmico; quando um jovem, com ajuda de seus amigos, rapta á força ou pela sedução, uma jovem, ela é possuída por todos um em seguida ao outro, mas depois passa a ser esposa do promotor do rapto. E, inversamente, se a mulher roubada foge da casa de seu marido e é recolhida por outro, torna-se esposa deste último, perdendo o primeiro suas prerrogativas. Ao lado e no seio do matrimônio por grupos, que, em geral, continua existindo, encontram-se, pois, relações exclusivistas, uniões por casais, a prazo mais ou menos longo, e também a poligamia; de maneira que também aqui o matrimônio por grupos vai se extinguindo, ficando o problema reduzido a saber-se quem, sob a influência européia, desaparecerá primeiro da cena: o matrimônio por grupos ou os negros australianos que ainda o praticam.
O matrimônio por classes inteiras, tal como existe na Austrália, é, em todo caso, uma forma muito atrasada e muito primitiva do matrimônio por grupos, ao passo que a família punaluana constitui, pelo que nos é dado conhecer, o seu grau superior de desenvolvimento. O primeiro parece ser a forma correspondente ao estado social dos selvagens nômades; a segunda já pressupõe o estabelecimento fixo de comunidades comunistas e conduz diretamente ao grau imediatamente superior de desenvolvimento. Entre essas duas formas de matrimônio, encontraremos ainda, sem dúvida, graus intermediários; este é um terreno para pesquisas que apenas foi descoberto, e no qual somente se deram os primeiros passos.
3 – A família sindiásmica
No regime de matrimônio por grupos, ou talvez antes, já se formavam uniões por pares, de duração mais ou menos longa; o. homem tinha uma mulher principal (ainda não se pode dizer que fosse uma favorita) entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros. Esta circunstância contribuiu bastante para a confusão produzida na mente dos missionários, que vêem no matrimônio por grupos ora uma comunidade promíscua das mulheres, ora um adultério arbitrário. A medida, porém, que evoluíam as gens e iam-se fazendo mais numerosas as classes de "irmãos" e "irmãs", entre os quais agora era impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada no costume, foi-se consolidando. O impulso dado pela gens á proibição do matrimônio entre, parentes consangüíneos levou as coisas ainda mais longe. Assim, vemos que entre os iroqueses e entre a maior parte dos índios da fase inferior da barbárie, está proibido o matrimônio entre todos os parentes reconhecidos pelo seu sistema, no qual há algumas centenas de parentescos diferentes. Com esta crescente complicação das proibições de casamento, tornaram-se cada vez mais impossíveis as uniões por grupos, que foram substituídas pela família sindiásmica. Neste estágio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas cruelmente castigado. O vínculo conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade por uma ou por outra parte, e depois, tal como outrora, os filhos continuam a pertencer exclusivamente à mãe.
Nessa exclusão, cada vez maior, que afeta os parentes consangüíneos do laço conjugal, a seleção natural continua a produzir seus efeitos. Segundo Morgan, o "matrimônio entre gens não consangüíneas engendra uma raça mais forte, tanto física como mentalmente; mesclavam-se duas tribos adiantadas, e os novos crânios e cérebros cresciam naturalmente até que compreendiam as capacidades de ambas as tribos". As tribos que haviam adotado o regime das gens estavam chamadas, pois, a predominar sobre as mais atrasadas, ou a arrastá-las com seu exemplo.
A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes e, por fim até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível na prática qualquer matrimônio por grupos; como último capítulo, não fica senão o casal, unido por vínculos ainda frágeis - essa molécula com cuja dissociação acaba o matrimônio em geral. Isso prova quão pouco tem a ver a origem da monogamia com o amor sexual individual, na atual acepção da palavra. Prova-o ainda melhor a prática de todos os povos que se acham nesta fase de seu desenvolvimento. Enquanto nas anteriores formas de família os homens nunca passavam por dificuldades para encontrar mulheres, e tinham até mais do que precisavam, agora as mulheres escasseavam e era necessário procurá-las. Por isso começam, com o matrimônio sindiásmico, o rapto e a compra de mulheres, sintomas bastante difundidos, mas nada além de sintomas de uma transformação muito mais profunda que se havia efetuado. Mac Lennan, esse escocês pedante, transformou, por arte de sua fantasia, tais sintomas, que não passam de simples métodos de adquirir mulheres, em diferentes classes de famílias, sob a forma de "matrimônio por rapto", e "matrimônio por compra". Além do mais, entre os índios da América e em outras tribos (no mesmo estágio), o arranjo de um matrimônio não concerne aos interessados, aos quais muitas vezes nem se consulta, e sim a suas mães. Comumente, desse modo, ficam comprometidos dois seres que nem sequer se conhecem e de cujo casamento só ficam sabendo quando chega o momento do enlace. Antes do casamento, o noivo dá presentes aos parentes gentílicos da noiva (quer dizer: aos parentes desta por parte de mãe, excluídos os parentes por parte de pai e o próprio pai) e esses presentes são considerados como o preço pelo qual o homem compra a jovem núbil que lhe cedem. O matrimônio é dissolúvel à vontade de cada um dos cônjuges. Em numerosas tribos, contudo, como, por exemplo, entre os iroqueses, formou-se, pouco a pouco, uma opinião pública hostil a essas separações; em caso de disputas entre os cônjuges, intervinham os parentes gentílicos de cada parte e só se esta mediação não surtisse efeito é que se levava a cabo o rompimento, permanecendo o filho com a mulher e ficando cada uma das partes livre para casar novamente.
A família sindiásmica, demasiado débil e instável por si mesma para fazer sentir a necessidade ou simplesmente o desejo de um lar particular, não suprime, em absoluto, o lar comunista que nos apresenta a época precedente. Mas lar comunista significa predomínio da mulher na casa; tal como o reconhecimento exclusivo de uma mãe própria, na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai; significa alto apreço pelas mulheres, isto é, pelas mães. Uma das idéias mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como, também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos missionário entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situação da mulher, ainda no matrimônio sindiásmico: "A respeito de suas famílias, na época em que ainda viviam nas antigas casas-grandes (domicílios comunistas de muitas famílias) . . . predominava sempre lá um clã (uma gens) e as mulheres arranjavam maridos em outros clãs (gens) . . . Habitualmente as mulheres mandavam na casa; as provisões eram comuns, mas - ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade ! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil tentar opor resistência, porque a casa se convertia para ele num inferno; não havia remédio senão o de voltar ao seu próprio clã (gens) ou, o que costumava acontecer com freqüência, contrair novos matrimônio em outro. As mulheres constituíam a grande força dentro dos clãs (gens) e, mesmo, em todos os lugares. Elas não vacilavam, quando a ocasião exigia, em destituir um chefe e rebaixá-lo á condição de mero guerreiro." A economia doméstica comunista, em que a maioria das mulheres, se não a totalidade, é de uma mesma gens, ao passo que os homens pertencem a outras gens diferentes, é a base efetiva daquela preponderância das mulheres que, nos tempos primitivos, esteve difundida por toda parte - fenômeno cujo descobrimento constitui o terceiro mérito de Bachofen. Posso acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missionários acerca do trabalho excessivo com que se sobrecarregam as mulheres entre os selvagens e os bárbaros não estão, de modo algum, em contradição com o que acabo de dizer. A divisão do trabalho entre os dois sexos depende de outras causas que nada têm a ver com a posição da mulher na sociedade. Povos nos quais as mulheres se vêem obrigadas a trabalhar muito mais do que lhes caberia, segundo nossa maneira de ver, têm freqüentemente muito mais consideração real por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada, cercada de aparentes homenagens, estranha a todo trabalho efetivo, tem uma posição social bem inferior à mulher bárbara, que trabalha duramente, e, no seio do seu povo, vê-se respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau = senhora) e o é de fato por sua própria posição.
Novas investigações acerca dos povos do noroeste e sobretudo no sul da América, que ainda se acham na fase superior do estado selvagem, deverão dizer-nos se o matrimônio sindiásmico substituiu ou não por completo hoje, na América, o matrimônio por grupos. Quanto aos sul-americanos, são referidos tão variados exemplos de licença sexual que se torna difícil admitir o desaparecimento completo do antigo matrimônio por grupos. Em todo caso, ainda não desapareceram todos os seus vestígios. Pelo menos, em quarenta tribos da América do Norte, o homem que se casa com a moça mais idosa tem direito a tomar igualmente como mulheres a todas as irmãs da mesma, logo que cheguem à idade própria. Isto é um vestígio da comunidade de maridos para todo um grupo de irmãs. Dos habitantes da península da Califórnia ( fase superior do estado selvagem), conta Bancroft que têm certas festividades em que se reúnem várias "tribos" para praticar o intercurso sexual mais promíscuo. Com toda a evidência são gens, que, nessas festas, conservam uma baga reminiscência do tempo em que as mulheres de uma gens tinham por maridos comuns todos os homens de outra, e reciprocamente. O mesmo costume impera ainda na Austrália. Em alguns povos, acontece que os anciãos, os chefes e os feiticeiros sacerdotes praticam, em proveito próprio, a comunidade de mulheres e monopolizam a maior parte delas; em compensação, porém, durante certas festas e grandes assembléias populares, são obrigados a admitir a antiga posse comum e a permitir que suas mulheres se divirtam com os homens jovens. Westermarck (págs. 28 e 29) dá uma série de exemplos de saturnais desse gênero, nas quais ressurge, por pouco tempo, a antiga liberdade de intercurso sexual: entre os hos, os santalas, os pandchas e os cotaros, na índia, em alguns povos africanos, etc. Westermarck deduz, de maneira assaz estranha, que estes fatos não constituem restos do matrimônio por grupos - cuja existência ele nega - e sim restos do período do cio, que os homens primitivos tiveram em comum com os animais.
Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen: o da grande difusão da forma de transição do matrimônio por grupos ao matrimônio sindiásmico. Aquilo que Bachofen representa como uma penitência pela transgressão de antigos mandamentos dos deuses, uma penitência imposta à mulher para ela comprar seu direito à castidade, não passa, em resumo, de uma expressão mística do resgate mediante o qual a mulher se liberta da antiga comunidade de maridos e adquire para si o direito de não se entregara mais de um homem. Esse resgate consiste em deixar-se possuir, durante um determinado período: as mulheres babilônicas estavam obrigadas a entregar-se uma vez por ano, no templo de Milita, outros povos da Ásia Menor enviavam suas filhas ao templo de Anaitis, onde, durante anos inteiros, elas deveriam praticar o amor livre com os favoritos que escolhessem, antes de lhes ser concedida permissão para casarem-se; em quase todos os povos asiáticos de entre o Mediterrâneo e o Ganges há práticas análogas, disfarçadas em costumes religiosos.
O sacrifício de expiação, que desempenha o papel do resgate, torna-se, com o tempo, cada vez mais ligeiro - como nota Bachofen: "A oferenda, repetida a cada ano, cede lugar a um sacrifício feito uma única vez; ao heterismo das matronas, segue-se o das jovens solteiras; verifica-se a prática antes do matrimônio, ao invés de durante o mesmo; e em lugar de abandonar-se a todos, sem ter o direito de escolher, a mulher já não se entrega senão a certas pessoas." (Direito Materno, pág. xix )
Em outros povos não existe esse disfarce religioso; entre alguns deles - os trácios, os celtas, etc., na antiguidade, em grande número de aborígines da Índia, nos povos malaios, nos ilhéus da Oceania e entre muitos índios americanos, hoje as jovens gozam de maior liberdade sexual até contraírem matrimônio. Assim acontece, sobretudo, na América do Sul, conforme podem atestá-lo quantos hajam penetrado um pouco em seu interior. De uma rica família de origem índia, refere Agassiz (Viagem pelo Brasil, Boston, 1886, pág. 226) que, tendo conhecido a filha da casa, perguntou-lhe por seu pai, supondo que seria o marido de sua mãe, oficial do exército em campanha contra o Paraguai; mas a mãe lhe respondeu, com um sorriso: "Não tem pai, é filha da fortuna". "As mulheres índias ou mestiças falam sempre neste tom, sem considerar vergonhoso ou censurável, de seus filhos ilegítimos; e essa é a regra, ao passo que o contrário parece ser a exceção. Os filhos[ . . . ], amiúde conhecem apenas sua mãe, porque todos os cuidados e todas as responsabilidades recaem sobre ela; nada sabem a respeito do pai, nem parece possa ocorrer á mulher a idéia de que ela ou seus filhos tenham o direito de reclamar dele alguma coisa." O que aqui parece assombroso ao homem civilizado é simplesmente a regra no matriarcado e no matrimônio por grupos.
Em outros povos, os amigos e parentes do noivo, ou os convidados para a celebração das bodas, exercem, durante o próprio casamento , o direito à noiva, por costume imemorial, e ao noivo só chega a vez por último, depois de todos; isso acontecia nas ilhas Baleares e entre os augilas africanos, na Abissínia. Há povos, ainda, em que um personagem oficial, chefe da tribo ou da gens, cacique, xamã, sacerdote ou príncipe, aquele que representa a coletividade, é quem exerce com a mulher que se casa o direito da primeira noite (jus primae noctis). Apesar de todos os esforços neo-românticos para contestá-lo, esse jus primae noctis continua existindo, em nossos dias, como uma relíquia do matrimônio por grupos, entre a maioria dos habitantes do território do Alasca ( Bancroft: Tribos Nativas, I, pág. 81), entre os tanus do norte do México ( op. cit., pág. 584 ) e entre outros povos; e existiu durante toda a Idade Média, pelo menos nos países de origem céltica, onde nasceu diretamente do matrimônio por grupos; em Aragão, por exemplo. Enquanto em Castela o camponês nunca foi servo, em Aragão reinou a servidão mais abjeta até a sentença ou édito arbitrai de Fernando, o Católico, em 1486, documento onde se diz: "Julgamos e determinamos que os senhores (senyors, barões) supraditos tampouco poderão passar a primeira noite com a mulher que haja tomado de um camponês, nem poderão, igualmente, durante a noite das núpcias, depois que a mulher se tenha deitado na cama, passar a perna por cima da cama ou da mulher, em sinal de sua soberania. Nem poderão os supraditos senhores servir-se das filhas ou filhos dos camponeses contra a vontade deles, com ou sem pagamento." ( Citado, segundo o texto original em catalão, por Sugenheim. A Servidão, São Petersburgo, 1861, pág. 35).
Afora isso, Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do que ele chama de "heterismo" ou "Sumpfzeugung" à monogamia realizou-se essencialmente graças às mulheres. Quanto mais as antigas relações sexuais perdiam seu caráter inocente primitivo e selvático, por forçado desenvolvimento das condições econômicas e, paralelamente, por força da decomposição do antigo comunismo, e da densidade cada vez maior da população, tanto mais envilecedoras e opressivas devem ter parecido essas relações para as mulheres, que com maior força deviam ansiar pelo direito à castidade, como libertação, pelo direito ao matrimônio, temporário ou definitivo, com um só homem. Esse progresso não podia ser devido ao homem, pela simples razão, que dispensa outras, de que jamais, ainda em nossa época, lhe passou pela cabeça a idéia de renunciar aos prazeres de um verdadeiro matrimônio por grupos. Só depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindiásmico, é que foi possível aos homens introduzirem a estrita monogamia - na verdade, somente para as mulheres.
A família sindiásmica aparece no limite entre o estado selvagem e a barbárie, no mais das vezes durante a fase superior do primeiro, apenas em certos lugares durante a fase inferior da segunda. É a forma de família característica da barbárie, como o matrimônio por grupos é a do estado selvagem e a monogamia é a da civilização. Para que a família sindiásmica evoluísse até chegar a uma monogamia estável, foram necessárias causas diversas daquelas cuja ação temos estudado até agora. Na família sindiásmica já o grupo havia ficado reduzido à sua última unidade, à sua molécula biatômica: um homem e uma mulher. A seleção natural realizara sua obra, reduzindo cada vez mais a comunidade dos matrimônios; nada mais havia a fazer nesse sentido. Portanto, se não tivessem entrado em jogo novas forças impulsionadoras de ordem social, não teria havido qualquer razão para queda família sindiásmica surgisse outra forma de família. Mas tais força impulsionadoras entraram em jogo.
Deixemos agora a América, terra clássica da família sindiásmica. Não há indícios que nos permitam afirmar que nela se tenha desenvolvido alguma forma superior de família, que nela tenha existido a monogamia estável, em qualquer tempo ou lugar, antes do descobrimento e da conquista. O contrário aconteceu no Velho Mundo.
Aqui, a domesticação de animais e a criação do gado haviam aberto mananciais de riqueza até então desconhecidos, criando relações sociais inteiramente novas. Até a fase inferior da barbárie, a riqueza duradoura limitava-se pouco mais ou menos à habitação, às vestes, aos adornos primitivos e aos utensílios necessários para a obtenção e preparação dos alimentos: o barco, as armas, os objetos caseiros mais simples. O alimento devia ser conseguido todo dia, novamente. Agora, com suas manadas de cavalos, camelos, asnos, bois, carneiros, cabras e porcos, os povos pastores, que iam ganhando terreno ( os ários, no indiano País dos Cinco Rios e no vale do Ganges, assim como nas estepes de Oxus e Jaxartes, na ocasião esplendidamente irrigadas, e os semitas no Tigre e no Eufrates), haviam adquirido riquezas que precisavam apenas de vigilância e dos cuidados mais primitivos para reproduzir-se em proporção cada vez maior e fornecer abundantíssima alimentação de carne e leite. Desde então, foram relegados a segundo plano todos os meios anteriormente utilizados; a caça, que em outros tempos era uma necessidade, transformou-se em passatempo.
A quem, no entanto, pertenceria essa riqueza nova ? Não há dúvida de que, na sua origem, pertenceu à gens. Mas bem cedo deve ter-se desenvolvido a propriedade privada dos rebanhos. É bem difícil dizer se o autor do chamado primeiro livro de Moisés considerava o patriarca Abraão proprietário de seus rebanhos por direito próprio, por ser o chefe de uma comunidade familiar, ou em virtude de seu caráter de chefe hereditário de uma gens. Seja como for, o certo é que não devemos imaginá-lo como proprietário, no sentido moderno da palavra. É indubitável, também, que, nos umbrais da história autenticada já encontramos em toda parte os rebanhos como propriedade particular dos chefes de família, com n mesmo título que os produtos artístico da barbárie, os utensílios de metal, os objetos de luxo e, finalmente, o gado humano: os escravos.
A escravidão já tinha sido inventada. O escravo não tinha valor algum para os bárbaros da fase inferior. Por isso os índios americanos relativamente aos seus inimigos vencidos agiam de maneira bastante diferente da usada na fase superior. A tribo vencedora matava os homens derrotados, ou adotava-os como irmãos; as mulheres eram tomadas como esposas, ou, juntamente com seus filhos sobreviventes, adotadas de qualquer outra forma. Nessa fase, a força de trabalho do homem ainda não produz excedente apreciável sobre os gastos de sua manutenção. Ao introduzirem-se, porém, a criação do gado, a elaboração dos metais, a arte do tecido e, por fim, a agricultura, as coisas ganharam outra fisionomia. Principalmente depois Sue os rebanhos passaram definitivamente á propriedade da família, deu-se com a força de trabalho o mesmo que havia sucedido com as mulheres, antes tão fáceis de obter e que agora já tinham seu valor de troca e eram compradas. A família não se multiplicava com tanta rapidez quanto o gado. Agora eram necessárias mais pessoas para os cuidados com a criação; podia ser utilizado para isso o prisioneiro de guerra que, além do mais, poderia multiplicar-se tal como o gado.
Convertidas todas essas riquezas em propriedade particular das famílias, e aumentadas depois rapidamente, assestaram um rude golpe na sociedade alicerçada no matrimônio sindiásmico e na gens baseada no matriarcado. O matrimônio sindiásmico havia introduzido na família um elemento novo. junto á verdadeira mãe tinha posto o verdadeiro pai, provavelmente mais autêntico que muitos "pais" de nossos dias. De acordo com a divisão do trabalho na família de então, cabia ao homem procurar a alimentação e os instrumentos de trabalho necessários para isso; conseqüentemente, era, por direito, o proprietário dos referidos instrumentos, e em caso de separação levava-os consigo, da mesma forma que a mulher conservava os seus utensílios domésticos. Assim, segundo os costumes daquela sociedade, o homem era igualmente proprietário do novo manancial de alimentação, o gado, e, mais adiante, do novo instrumento de trabalho, o escravo. Mas, consoante o uso daquela mesma sociedade, seus filhos não podiam herdar dele, pois, quanto a este ponto, as coisas se passavam da maneira que iremos adiante referir..
Com base no direito materno, isto é, enquanto a descendência só se contava por linha feminina, e segundo a primitiva lei de herança imperante na gens, os membros dessa mesma gens herdavam, no principio, do seu parente gentílico falecido. Seus gens deveriam ficar, pois, dentro da gens. Devido á sua pouca importância, esses gens passavam, na prática, desde os tempos mais remotos, aos parentes gentílicos mais próximos, isto é, aos consangüíneos por linha materna. Entretanto, os filhos de um homem falecido não pertenciam á gens daquele, mas á de sua mãe; ao princípio, herdavam da mãe, como os demais consangüíneos desta; depois, provavelmente, foram seus primeiros herdeiros, mas não podiam sê-lo de seu pai, porque não pertenciam á gens do mesmo, na qual deveriam ficar os seus gens. Desse modo, pela morte do proprietário de rebanhos, esses passavam em primeiro lugar aos seus irmãos e irmãs, e aos filhos destes ou aos descendentes das irmãs de sua mãe; quanto aos seus próprios filhos, ficavam deserdados.
Dessa forma, pois, as riquezas, á medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam com que nascesse nele a idéia de valer-se desta vantagem para modificar, em proveito de seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno. Esse direito teria que ser abolido, e o foi. E isto não foi tão difícil quanto hoje nos parece. Tal revolução. - uma das mais profundas que a humanidade já conheceu - não teve necessidade de tocar em nenhum dos membros vivos da gens. Todos os membros da gens puderam continuar sendo o que até então haviam sido. Bastou decidir simplesmente que, de futuro, os descendentes de um membro masculino permaneceriam na gens, mas os descendentes de um membro feminino sairiam dela, passando à gens de seu pai. Assim, foram abolidos a filiação feminina e o direito hereditário materno, sendo substituídos pela filiação masculina e o direito hereditário paterno. Não sabemos a respeito de como e quando se produziu essa revolução entre os povos cultos, pois isso remonta aos tempos pré-históricos. Mas os dados reunidos, sobretudo por Bachofen, acerca dos numerosos vestígios do direito materno, demonstram plenamente que tal revolução ocorreu; e com que facilidade, verificamo-lo em muitas tribos índias onde acaba de efetuar-se, ou se está realizando, em parte pelo influxo do incremento das riquezas e modificações no gênero de vida (migração dos bosques para os prados), em parte pela influência moral da civilização e dos missionários. De oito tribos do Missouri, seis estão regidas pela linhagem e ordem de herança masculinas, duas pelas femininas. Entre os schawnees, os miamies e os delawares adotou-se o costume de dar aos filhos um nome pertencente à gens paterna, para fazê-los passar a esta, a fim de poderem herdar de seu pai. "Casuística inata nos homens a de mudar as coisas mudando-lhes os nomes! E achar saídas para romper com a tradição sem sair dela, sempre que um interesse direto dá o impulso suficiente para isso" (Marx). Resultou daí uma espantosa confusão, que só podia ser remediada - e parcialmente o foi - com a passagem ao patriarcado. "Esta parece ser a transição mais natural" (Marx). Quanto ao que os especialistas em Direito Comparado podem dizer-nos sobre o modo como se deu essa transição entre os povos civilizados do Mundo Antigo - quase tudo são hipóteses -, veja-se Kovalévski, Quadro das Origens e da Evolução da Família e da Propriedade, Estocolmo, 1890.
O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.
O primeiro efeito do poder exclusivo dos homens, desde o momento em que se instaurou, observamo-lo na forma intermediária da família patriarcal, que surgiu naquela ocasião. O que caracteriza essa família, acima de tudo, não é a poligamia, da qual logo falaremos, e sim a "organização de certo número de indivíduos, livres e não livres, numa família submetida ao poder paterno de seu chefe. Na forma semítica, esse chefe de família vive em plena poligamia, os escravos têm uma mulher e filhos, e o objetivo da organização inteira é o de cuidar do gado numa determinada área." Os traços essenciais são a incorporação dos escravos e o domínio paterno; por isso a família romana é o tipo perfeito dessa forma de família. Na sua origem, a palavra família não significa o ideal - mistura de sentimentalismo e dissensões domésticas do filisteu de nossa época; - a princípio, entre os romanos, não se aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família "id est patrimonium" ( isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. "A palavra não é, pois, mais antiga que o férreo sistema familiar das tribos latinas que nasceu ao introduzirem-se a agricultura e a escravidão legal, depois da cisão entre os gregos e latinos arianos." E Marx acrescenta: "A família moderna contém, em germe, não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada com os serviços da agricultura. Encerra, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade e em seu Estado."
Esta forma de família assinala a passagem do matrimônio sindiásmico á monogamia. Para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, aquela é entregue, sem reservas, ao poder do homem: quando este a mata, não faz mais do que exercer o seu direito.
Com a família patriarcal, entramos no domínio da História escrita, onde a ciência do Direito Comparado nos pode prestar grande auxílio. Efetivamente, essa ciência nos permitiu aqui fazer importantes progressos. A Máxím Kovalévski (Quadro das Origens e da Evolução da Família e da Propriedade, Estocolmo, 1890, págs. 60/100), devemos a idéia de que a comunidade familiar patriarcal (patriarchalische Hausgenossenchaft), conforme ainda existe entre os sérvios e os búlgaros com o nome de zádruga (que pode traduzir-se mais ou menos por confraternidade) ou bratswo (fraternidade) e, sob uma forma modificada, entre os orientais, constituiu o estágio de transição entre a família de direito materno - fruto do matrimônio por grupos - e a monogamia moderna. Isso parece provado, pelo menos quanto aos povos civilizados de Mundo Antigo, os árias e os semitas.
A zádruga dos eslavos do sul constitui o melhor exemplo ainda existente de uma comunidade familiar dessa espécie. Abrange muitas gerações de descendentes de um mesmo pai, os quais vivem juntos, com suas mulheres, sob um mesmo teto; cultivam suas terras em comum, alimentam-se e vestem-se de um fundo comum e possuem coletivamente a sobra dos produtos. A comunidade está sujeita à administração superior do dono da casa (domàcin), que a representa ante o mundo exterior, tem o direito de alienar as coisas de menor valor, movimenta as finanças, é responsável por elas, tal como pela boa marcha dos negócios. É eleito, e para isso não precisa ser o de mais idade. As mulheres e o trabalho das mesmas estão sob a direção da dona da casa (domàcica), que costuma ser a mulher do domàcin. Esta, igualmente, tem voz - e amiúde decisiva - na escolha de maridos para as jovens solteiras. Porém o poder supremo pertence ao conselho de família, á assembléia de todos os adultos da comunidade, homens e mulheres. Perante esta assembléia, o chefe de família presta contas, e é ela que resolve as questões importantes, ministra justiça entre todos os membros da comunidade, decide sobre as compras e vendas mais importantes, sobretudo as de terras, etc.
Há pouco mais de dez anos que se comprovou, na Rússia, a existência de grandes comunidades familiares desse gênero; e hoje todo o mundo reconhece que elas têm, nos costumes populares russos, raízes tão profundas quanto a obschina ou comunidade rural. Figuram no mais antigo código russo - a Pravda de Yaroslav - com o mesmo nome (verv) com que aparecem nas leis da Dalmácia; e nas fontes históricas tchecas e polonesas também podemos encontrar referências a seu respeito.
Também entre os germanos, segundo Heusler (Instituições do Direito Alemão), a unidade econômica primitiva não é a família isolada, no sentido moderno da palavra, e sim uma "comunidade familiar" (Hausgenossenschaft) que se compõe de várias gerações com suas respectivas famílias e que inclui freqüentemente indivíduos não livres. A família romana refere-se, também, a essa espécie de comunidade, e, por causa disso, o poder absoluto do pai sobre os demais membros da família, por certo privados inteiramente de direitos quanto a ele, tem sido posto muito em dúvida ultimamente. Comunidades familiares assim devem ter existido entre os celtas da Irlanda; subsistiram na França, no Nivernais, coro o nome de parçonneries, até a Revolução Francesa - e ainda não se extinguiram no Franco-Condado. Nos arredores de Louans (Saone e Loire), vêem-se grandes casarões de camponeses com uma sala comum, central, muito alta, que chega até a cumeeira do telhado; em torno se encontram os dormitórios, aos quais se sobe por escadas de seis a oito degraus; nesses casarões moram diversas gerações da mesma família.
A comunidade familiar, com cultivo do solo em comum, já era mencionada, na índia, por Nearco, ao tempo de Alexandre Magno, e ainda existe no Punjabe e em todo o noroeste do país. O próprio Kovalévski pôde encontrá-la no Cáucaso. Na Argélia ainda existe, nas Cabilas. Diz-se que existiu até na América; esforços são feitos para identificá-la com as "calpullis" no antigo México, descritas por 7urita; por outro lado, Cunow (Ausland 1890, números 42/44) , demonstrou, com bastante clareza, que, na época da conquista, existia no Peru uma espécie de marca ( que, curiosamente, ali também se chamava marca), com partilha periódica das terras cultiváveis e, conseqüentemente, cultivo individual.
Em todo caso, a comunidade familiar patriarcal, com posse e cultivo do solo em comum, adquire agora uma significação bem diferente da que tinha antes. Já não podemos duvidar do grande papel de transição que desempenhou, entre os civilizados e outros povos na antiguidade, no período entre a família de direito materno e a família monogâmica. Adiante falaremos a respeito de outra conclusão de Kovalévski, a saber: que a comunidade familiar foi igualmente o estágio de transição que precedeu a marca ou comunidade rural, com cultivo individual do solo e partilha a princípio periódica e depois definitiva - dos campos e pastos.
Quanto à vida em família no seio de tais comunidades familiares, deve-se ressaltar que, pelo menos na Rússia, os donos da casa têm fama de abusar muito de sua situação, no que concerne às mulheres mais jovens da comunidade, principalmente suas noras, com as quais muitas vezes formam um harém; as canções populares russas são bastante eloqüentes a esse respeito.
Antes de passar à monogamia - à qual o fim do matriarcado imprime um rápido desenvolvimento - devemos dizer algumas palavras sobre a poligamia e a poliandria. Estas duas formas de matrimônio só podem ser exceções, artigos de luxo da história, digamo-lo, a não ser que se verifiquem simultaneamente, em um mesmo país, o que, como sabemos, não ocorre. Pois bem: como os homens excluídos da poligamia não se podiam consolar com as mulheres deixadas de lado pela poliandria, e como o número de homens e mulheres, independentemente das instituições sociais, tem sido sempre quase igual, até nossos dias, nenhuma dessas duas formas de matrimônio se generalizou. Na realidade, a poligamia de um homem era, evidentemente, um produto da escravidão e limitava-se a alguns poucos casos excepcionais. Na família patriarcal semítica, o próprio patriarca e, no máximo, alguns de seus filhos vivem como polígamos, contentando-se obrigatoriamente os demais com uma só mulher. Assim sucede, ainda hoje, em todo o Oriente: a poligamia é um privilégio dos ricos e dos poderosos, e as mulheres são recrutadas sobretudo na compra de escravas; a massa do povo é monógama. Uma exceção parecida é a da poliandria na Índia e no Tibete, nascida do matrimônio por grupos e cuja interessante origem fica por ser estudada mais a fundo. Na prática, parece bem mais tolerante que o ciumento regime dos haréns muçulmanos. Entre os naires da índia, pelo menos, três, quatro ou mais homens têm uma mulher em comum; mas cada um deles pode ter, em conjunto com outros homens, uma segunda, uma terceira, uma quarta mulher, ou mais. E surpreendente que Mac Lennan, ao descrevê-los, não tenha descoberto uma nova categoria de matrimônio - o matrimônio por clubes - nesses clubes conjugais, de vários dos quais um homem pode fazer parte. Por certo, o sistema de clubes conjugais nada tem a ver com a poliandria efetiva; ao contrário, como já o notou Giraud-Teulon, é uma forma particular (spezialisierte) do matrimônio por grupos; os homens vivem na poligamia, e as mulheres na poliandria
4 – A família monogâmica
Nasce, conforme indicamos, da família sindiásmica, no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie; seu triunfo definitivo é um dos sintomas da civilização nascente. Baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se, essa paternidade, indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um dia, na posse dos gens de seu pai. A família monogâmica diferencia-se do matrimônio sindiásmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais, que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar sua mulher. Ao homem, igualmente, se concede o direito á infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume (o Código de Napoleão outorga-o expressamente, desde que ele não traga a concubina ao domicílio conjugal), e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa a evolução da sociedade.Quando a mulher, par acaso, recorda as antigas práticas sexuais e intenta renová-las, é castigada mais rigorosamente do que em qualquer outra época anterior.
Entre os gregos, encontramos, com toda a sua severidade, a nova forma de família. Enquanto a situação das deusas na mitologia, como assinala Marx, nos fala de um período anterior, em que as mulheres ocupavam uma posição mais livre e de maior consideração, nos tempos heróicos já vemos a mulher humilhada pelo predomínio do homem e pela concorrência das escravas. Leia-se na Odisséia, como Telêmaco interrompe sua mãe e lhe impõe silêncio. Em Homero, os vencedores aplacam seus apetites sexuais nas jovens capturadas, escolhendo os chefes para si, por turno e segundo a sua categoria, as mais formosas; e é sabido que toda a Ilíada gira em torno de uma disputa mantida entre Aquiles e Agamenon por causa de uma escrava. Junto a cada herói, mais ou menos importante, Homero fala da jovem cativa que vive em sua tenda e dorme em seu leito. Essas jovens eram, ainda, conduzidas ao país natal dos heróis, á casa conjugal, conforme Agamenon fez com Cassandra em Ésquilo. Os filhos nascidos dessas escravas recebem uma pequena parte da herança paterna e são considerados homens livres; assim, Teucro, que é filho natural de Telamon, tem direito de usar o nome de seu pai.
Quanto á mulher legítima, exige-se dela que tolere tudo isso e, por sua vez, guarde uma castidade e uma fidelidade conjugal rigorosas. É certo que a mulher grega da época heróica é mais respeitada que a do período civilizado; todavia, para o homem, não passa, afinal de contas, da mãe de seus filhos legítimos, seus herdeiros, aquela que governa a casa e vigia as escravas - escravas que ele pode transformar ( e transforma) em concubinas, à sua vontade. A existência da escravidão junto á monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao homem, é o que imprime desde a origem um caráter específico á monogamia que é monogamia só para a mulher, e não para o homem. E, na atualidade, conserva-se esse caráter.
Quanto aos gregos de uma época mais recente, devemos distinguir entre os dóricos e os jônios. Os primeiros, dos quais Espanta é o exemplo clássico, sob muitos aspectos têm relações conjugais muito mais primitivas que as pintadas por Homero. Em Esparta existe um matrimônio sindiásmico modificado pelo Estado conforme as concepções ali dominantes e que conserva inúmeros vestígios do matrimônio por grupos. As uniões estéreis são rompidas: o rei Anaxândrides (por volta do ano 650 antes de nossa era) tomou uma segunda mulher, sem deixar a primeira, que era estéril, e mantinha dois domicílios conjugais; por essa mesma época, o rei Ariston, tendo duas mulheres sem filhos, tomou outra, mas despediu uma das duas primeiras. Além disso, vários irmãos podiam ter uma mulher comum; o homem que preferia a mulher de seu amigo podia partilhá-la com ele; e era considerado decente pôr a própria mulher à disposição de um vigoroso "garanhão" (como diria Bismarck ), ainda que este não fosse um concidadão. De um trecho de Plutarco, em que uma espartana envia a seu marido um amante que a perseguia com suas propostas, pode-se, inclusive, deduzir, conforme Schömann, uma liberdade de costumes ainda maior. Por esta razão, era coisa inaudita o adultério efetivo, a infidelidade da mulher às escondidas de seu marido. Por outro lado, a escravidão doméstica era desconhecida em Esparta, pelo menos no seu apogeu; os servos ilotas viviam separados, nas terras de seus senhores, e, por conseguinte, entre os cidadãos livres espartanos era menor a tentação de se divertirem com as mulheres daqueles.
Por todas essas razões, as mulheres tinham, em Esparta, uma situação de maior respeito que entre os outros gregos. As casadas espartanas e a elite das hetairas atenienses são as únicas mulheres das quais os antigos falam com consideração e das quais se deram ao trabalho de recolher os ditos.
Outra coisa bem diversa se passava entre os jônios, para os quais é característico o regime de Atenas. As donzelas aprendiam apenas a fiar, tecer e coser, e quando muito, a ler e a escrever. Eram praticamente cativas e só lidavam com outras mulheres. Habitavam um aposento separado, situado no alto ou atrás da casa; os homens, sobretudo os estranhos, não entravam ali com facilidade - e as mulheres se retiravam quando chegava algum visitante. Não saíam, as mulheres, sem que as acompanhasse uma escrava; dentro de casa, eram literalmente submetidas à vigilância; Aristófanes fala de cães molossos para espantar adúlteros e, nas cidades asiáticas, para vigiar as mulheres, havia eunucos - os quais, desde os tempos de Heródoto, eram fabricados em Quios para serem comerciados, e não serviam apenas aos bárbaros, a crer-se em Wachsmuth. Em Eurípides, a mulher é designada como oikurema, isto é, algo destinado a cuidar da casa (a palavra é neutra) e, além da procriação dos filhos, não passava de criada principal para o ateniense. O homem tinha seus exercícios ginásticos e suas discussões públicas, coisas de que a mulher estava excluída; costumava ter escravas à sua disposição e dispunha, na época florescente de Atenas, de uma prostituição bastante extensa e, em todo caso, protegida pelo Estado. Aliás, foi precisamente com base nessa prostituição que se desenvolveram aquelas mulheres gregas que se destacaram do nível geral da mulher do Mundo Antigo por seu talento e gosto artístico, da mesma forma que as espartanas se sobressaíram por seu caráter. Mas o fato de que, para se converter realmente em mulher, fosse preciso antes ser hetaira, constitui a mais severa condenação da família ateniense.
Com o tempo, essa família ateniense chegou a ser o tipo pelo qual modelaram suas relações domésticas não apenas o resto dos jônios como, ainda, todos os gregos da metrópole e das colônias. Entretanto, apesar do seqüestro e da vigilância, as gregas achavam muitas e freqüentes ocasiões para enganar os seus maridos. Estes, que se teriam ruborizado de demonstrar o menor amor às suas mulheres, divertiam-se com toda espécie de jogos amorosos com hetairas; mas o envilecimento das mulheres refluiu sobre os próprios homens e também os envilece, levando-os às repugnantes práticas da pederastia e a desonrarem seus deuses e a si próprios, pelo mito de Ganimedes.
Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antigüidade. De modo algum foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram casamentos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. Quanto ao mais, o casamento era para eles uma carga, um dever para com os deuses, o Estado e seus antepassados, dever que estavam obrigados a cumprir. Em Atenas, a lei não apenas impunha o matrimônio como, ainda, obrigava o marido a um mínimo determinado do que se chama de obrigações conjugais.
A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro a seguinte frase: "A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade.
A antiga liberdade relativa de relações sexuais não desapareceu completamente com o triunfo do matrimônio sindiásmico, nem mesmo com o da monogamia. "O antigo sistema conjugal, reduzido a limites mais estreitos pela gradual desaparição dos grupos punaluanos, continuou acompanhando a família que evoluía e ficou ligado a ela até os alvores da civilização... ; desapareceu, por fim, com a nova forma de heterismo, que acompanha o gênero humano até a plena civilização, qual uma sombra negra se projetando sobre a família." Morgan entende por heterismo as relações extraconjugais - existentes junto com a monogamia - dos homens com mulheres não casadas, relações que, como se sabe, florescem sob as mais variadas formas durante toda a época da civilização e se transformam, cada vez mais, em aberta prostituição. Esse heterismo descende, em linha reta, do matrimônio por grupos, do sacrifício pessoal que as mulheres faziam para adquirir direito à castidade. A entrega por dinheiro foi, a princípio, um ato religioso: era praticada no templo da deusa do amor e, primitivamente, o dinheiro ia para as arcas do templo. As hieródulas de Anaitis, na Armênia, de Afrodite em Corinto, tal como as bailarinas religiosas agregadas aos templos da Índia, conhecidas pelo nome de bayaderas ( corruptela do português bailadeira), foram as primeiras prostitutas. O sacrifício da entrega, no início, dever de todas as mulheres, passou a ser exercido, mais tarde, apenas por essas sacerdotisas, em substituição a todas as demais. Em outros povos, o heterismo provém da liberdade sexual concedida às jovens antes do matrimônio; assim, pois, é também um resto do matrimônio por grupos, mas que chegou até nós por outros caminhos.
Com a diferenciação na propriedade, isto é, já na fase superior da barbárie, aparece, esporadicamente, o trabalho assalariado junto ao trabalho dos escravos; e, ao mesmo tempo, como seu correlativo necessário, a prostituição profissional das mulheres livres aparece junto à entrega forçada das escravas. Desse modo, pois, é dúbia a herança que o matrimônio por grupos legou à civilização - e tudo que a civilização produz é também dúbio, ambíguo, equívoco, contraditório: de um lado a monogamia, de outro, o heterismo, incluída a sua forma extrema, a prostituição. O heterismo é uma instituição social como outra qualquer, e mantém a antiga liberdade sexual... em proveito dos homens. Embora seja, de fato, não apenas tolerado, mas praticado livremente sobretudo pelas classes dominantes, ele é condenado em palavras. E essa reprovação, na realidade, nunca se dirige contra os homens que o praticam e sim, somente, contra as mulheres, que são desprezadas e repudiadas, para que se proclame uma vez mais, como lei fundamental da sociedade, a supremacia absoluta do homem sobre o sexo feminino.
Mas, na própria monogamia, desenvolve-se uma segunda contradição. Junto do marido, que amenizava a existência com o heterismo, acha-se a esposa abandonada. E não pode haver um termo de uma contradição sem que lhe corresponda o outro, como não se pode ter nas mãos uma maçã inteira, depois de se ter comido sua metade. Esta, no entanto, parece ter sido a opinião dos homens, até que as mulheres lhes puseram outra coisa na cabeça. Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido corneado. Os homens haviam conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente, de coroar os vencedores. O adultério, proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável, junto à monogamia e ao heterismo. No melhor dos casos, a certeza da paternidade baseava-se agora, como antes, no convencimento moral, e para resolver a contradição insolúvel o Código de Napoleão dispôs em seu artigo 312: "L'enfant conçu pendant le mariage a pour père le mari". ( "O filho concebido durante o matrimônio tem por pai o marido:”). É este o resultado final de três mil anos de monogamia.
Assim, nos casos em que a família monogâmica reflete fielmente sua origem histórica e manifesta com clareza o conflito entre o homem e a mulher, originado pelo domínio exclusivo do primeiro, teremos um quadro em miniatura das contradições e antagonismos em meio aos quais se move a sociedade, dividida em classes desde os primórdios da civilização, sem poder resolvê-los nem superá-los. Naturalmente que só me refiro aqui aos casos de monogamia em que a vida conjugal transcorre conforme as prescrições do caráter original desta instituição, mas na qual a mulher se rebela contra o domínio do homem. Que não é em todos os casamentos que assim ocorre, sabe-o melhor do que ninguém o filisteu alemão, que não sabe mandar nem em sua casa nem no Estado, e cuja mulher veste com plenos direitos as calças de que não é digno. Mas, nem por isso, deixa de acreditar-se muito superior ao seu companheiro de infortúnios da França, a quem sucedem coisas bem mais desagradáveis, com maior freqüência do que a ele mesmo.
Por certo, a família monogâmica não se revestiu, em todos os lugares e épocas, da forma clássica e rígida que teve entre os gregos. A mulher era mais livre e mais considerada entre os romanos, os quais, na qualidade de futuros conquistadores do mundo, tinham das coisas um conceito mais amplo, apesar de menos refinado que o dos gregos. O romano acreditava suficientemente garantida a fidelidade da sua mulher pelo direito de vida e morte que tinha sobre ela. Além disso, a mulher, lá, podia romper o vínculo matrimonial à sua vontade, tal como o homem. Mas o maior progresso no desenvolvimento da monogamia realizou-se, indubitavelmente, com a entrada dos germanos na história; e assim foi porque, dada a sua pobreza, parece que, naquele tempo, a monogamia ainda não se tinha desenvolvido plenamente entre eles, desprendendo-se do casamento sindiásmico. Tiramos esta conclusão à base de três circunstâncias mencionadas por Tácito: em primeiro lugar, juntamente com a santidade do matrimônio ("contentam-se com uma só mulher, e as mulheres vivem cercadas por seu pudor"), a poligamia existia para os grandes e os chefes de tribo – situação análoga à dos americanos, entre os quais existia o matrimônio sindiásmico. Em segundo lugar, a passagem do direito materno ao direito paterno devia ter-se realizado recentemente, pois o irmão da mãe (o parente gentílico mais próximo, segundo o matriarcado) quase era tido como um parente mais próximo do que o próprio pai - o que também corresponde ao ponto de vista dos índios americanos, entre os quais tinha Marx encontrado, como costumava dizer, a chave para compreender os nossos tempos primitivos. E, em terceiro lugar, as mulheres, entre os germanos, gozavam da mais elevada consideração e exerciam grande influência, até nos assuntos públicos - o que é diametralmente oposto à supremacia masculina da monogamia. Todos estes são pontos nos quais os germanos estão quase inteiramente de acordo com os espartanos, entre os quais, conforme vimos, também não tinha desaparecido de todo o matrimônio sindiásmico. Assim, desse ponto de vista, igualmente, aparecia com os germanos um elemento inteiramente novo, que se impôs em âmbito mundial. A nova monogamia que resultou da mistura dos povos, entre as ruínas do mundo romano, revestiu a supremacia masculina de formas mais suaves e deu às mulheres uma posição muito mais considerada e livre, pelo menos aparentemente, do que as que ela já tivera - na idade clássica. Graças a isso foi possível, a partir da monogamia - em seu seio, a seu lado, ou contra ela, segundo as circunstâncias - , o maior progresso moral que lhe devemos: o amor sexual individual moderno, anteriormente desconhecido no mundo.
Mas devia-se este progresso, seguramente, à circunstância de viverem os germanos ainda sob o regime da família sindiásmica, e de terem levado à monogamia, da forma que puderam, a situação da mulher correspondente à da família sindiásmica; não se devia, de modo algum, à legendária e maravilhosa pureza de costumes ingênita nos germanos, a qual se reduzia ao fato de que, na prática, o matrimônio sindiásmico não revela as mesmas agudas contradições morais da monogamia. Pelo contrário, em suas migrações, particularmente ao sudeste, em direção às estepes do Mar Negro, povoadas por nômades, os germanos sofreram sensível decadência do ponto de vista moral, adquirindo desses nômades, além da arte da equitação, feios vícios antinaturais, sobre os quais temos os testemunhos expressos de Amiano, quanto aos taifalienses, e de Procópio, quanto aos hérulos.
Mas se a monogamia foi, de todas as formas de família conhecidas, a única em que se pôde desenvolver o amor sexual moderno, isso não quer dizer, de modo algum, que ele se tenha desenvolvido de maneira exclusiva, ou ainda preponderante, sob forma de amor mútuo dos cônjuges. A própria natureza da monogamia, solidamente baseada na supremacia do homem, exclui tal possibilidade. Em todas as classes históricas ativas, isto é, em todas as classes dominantes, o matrimônio continuou sendo o que tinha sido desde o matrimônio sindiásmico, coisa de conveniência, arranjada pelos pais. A primeira forma do amor sexual aparecida na história, o amor sexual como paixão, e por certo como paixão possível para qualquer homem (pelo menos das classes dominantes), como paixão que é a forma superior da atração sexual (o que constitui precisamente seu caráter específico), essa primeira forma, o amor cavalheiresco da Idade Média, não foi, de modo algum, amor conjugal. Longe disso, na sua forma clássica, entre os provençais, voga a todo pano para o adultério, que é cantado por seus poetas. A flor da poesia amorosa provençal são as albas ( em alemão Tagelieder - cantos do alvorecer). Pintam, com vivas cores, como o cavaleiro deita com sua amada, mulher de outro, enquanto na rua permanece um vigia, que o chama quando começa a clarear a madrugada (alba), para que possa escapar sem ser visto. A cena da separação é geralmente o ponto culminante do poema. Os franceses do norte e os nossos valentes alemães adotaram este gênero de poesia e, ao mesmo tempo, o amor cavalheiresco que lhe corresponde; o nosso antigo Wolfram von Eschenbach deixou sobre este sugestivo tema três encantadores Tagelieder, que prefiro aos seus três longos poemas épicos.
O casamento burguês assume duas feições, em nossos dias. Nos países católicos, agora, como antes, os pais são os que proporcionam ao jovem burguês a mulher que lhe convém, do que resulta naturalmente o mais amplo desenvolvimento da contradição que a monogamia encerra: heterismo exuberante por parte do homem e adultério exuberante por parte da mulher. E se a Igreja Católica aboliu o divórcio, é provável que seja porque terá reconhecido que contra o adultério, como contra a morte, não há remédio que valha. Nos países protestantes, ao contrário, a regra geral é conceder ao filho do burguês mais ou menos liberdade para procurar mulher dentro da sua classe; por isso, o amor pode ser até certo ponto a base do matrimônio, e assim se supõe sempre que seja, para guardar as aparências, o que está muito de acordo com a hipocrisia protestante. O marido já não pratica o heterismo tão freqüentemente e a infidelidade da mulher é mais rara, mas, como em todas as classes de matrimônio, os seres humanos continuam sendo o que eram antes, e como os burgueses dos países protestantes são, em sua maioria, filisteus, essa monogamia protestante vem a dar, mesmo tomando o termo médio dos melhores casos, em um aborrecimento mortal, sofrido em comum, e que se chama felicidade doméstica. O melhor espelho destes dois tipos de matrimônio é a novela: a novela francesa, para a maneira católica; a novela alemã, para a protestante. Em ambos os casos, o homem "consegue o seu"; na novela alemã, o jovem consegue a moça; na novela francesa, o marido ganha um par de cornos. Qual dos dois sai pior recompensado ? Nem sempre é possível dizê-lo. Por isso, o clima de aborrecimento da novela alemã inspira aos leitores da burguesia francesa o mesmo horror que a "imoralidade" da novela francesa inspira ao filisteu alemão, embora nesses últimos tempos, desde que "Berlim está se tornando uma grande capital", a novela alemã começou a tratar um pouco menos timidamente o heterismo e o adultério, bem conhecidos ali há já bastante tempo.
Mas, em ambos os casos, o matrimônio baseia-se na posição social dos contraentes e, portanto, é sempre um matrimônio de conveniência. Também nos dois casos, esse matrimônio de conveniência se converte, com freqüência, na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os cônjuges, porém, muito mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia da cortesã habitual pelo fato de que não aluga o seu corpo por hora, como uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava. E a todos os matrimônios de conveniência cai como uma luva a frase de Fourier: "Assim como em gramática duas negações equivalem a uma afirmação, de igual maneira na moral conjugal duas prostituições equivalem a uma virtude." Nas relações com a mulher, o amor sexual só pode ser, de fato, uma regra entre as classes oprimidas, quer dizer, em nossos dias, o proletariado, estejam ou não estejam autorizadas oficialmente essas relações. Mas, desaparecem também, nesses casos, todos os fundamentos da monogamia clássica. Faltam aqui, por completo, os bens de fortuna, para cuja conservação e transmissão por herança foram instituídos, precisamente, a monogamia e o domínio do homem; e, por isso, aqui também falta todo o motivo para estabelecer a supremacia masculina. Mais ainda, faltam até os meios de consegui-lo: o direito burguês, que protege essa supremacia, só existe para as classes possuidoras e para regular as relações destas classes com os proletários. Isso custa dinheiro e, por força da pobreza do operário, não desempenha papel algum na atitude deste para com sua mulher. Neste caso, o papel decisivo cabe a outras relações pessoais e sociais. Além disso, sobretudo desde que a grande indústria arrancou a mulher ao lar para atirá-la ao mercado de trabalho e à fábrica, convertendo-a, freqüentemente, em sustentáculo da casa, ficaram desprovidos de qualquer base os restos da supremacia do homem no lar proletário, excetuando-se, talvez, certa brutalidade no trato com as mulheres, muito arraigada desde o estabelecimento da monogamia. Assim, pois, a família do proletário já não é monogâmica no sentido estrito da palavra, nem mesmo com o amor mais apaixonado e a fidelidade mais absoluta dos cônjuges, e apesar de todas as bênçãos espirituais e temporais possíveis. Por isso, o heterismo e o adultério, eternos companheiros da monogamia, desempenham aqui um papel quase nulo; a mulher reconquistou, na prática, o direito de divórcio e os esposos preferem se separar quando já não se podem entender um com o outro. Resumindo: o matrimônio proletário é monogâmico no sentido etimológico da palavra, mas de modo algum em seu significado histórico.
Certamente os nossos jurisconsultos acham que o progresso da legislação vai tirando cada vez mais às mulheres qualquer razão de queixa. Os sistemas legislativos dos países civilizados modernos vão reconhecendo, progressivamente, que, em primeiro lugar, o matrimônio, para ser válido, deve ser um contrato livremente firmado por ambas as partes, e, em ;segundo lugar, que durante a sua vigência as partes devem ter mesmos direitos e deveres. Se estas duas condições fossem realmente postas em prática, as mulheres teriam tudo aquilo e podem desejar.
Essa argumentação - tipicamente jurídica - é exatamente mesma de que se valem os republicanos radicais burgueses para dissipar os receios dos proletários. Supõe-se que o contrato de trabalho seja livremente firmado por ambas as partes. Mas considera-se livremente firmado desde o momento em que a lei estabelece no papel a igualdade de ambas as partes. A força que a diferença de situação de classe dá a uma das partes, a pressão que esta força exerce sobre a outra, a situação econômica real de ambas; tudo isso não interessa à lei. Enquanto dura o contrato de trabalho, continua a suposição de que as duas partes desfrutam de direitos iguais, desde que uma ou outra não renuncie expressamente a eles. E, se a situação econômica concreta do operário o obriga a renunciar até à última aparência de igualdade de direitos, a lei - novamente - nada tem a ver com isso.
Quanto ao matrimônio, mesmo a legislação mais progressista dá-se por inteiramente satisfeita desde o instante em que os interessados fizeram inscrever formalmente em ata o seu livre consentimento. O que se passa fora dos bastidores do tribunal, na vida real, e como se expressa este consentimento, não são questões que cheguem a inquietar a lei ou o legislador. Entretanto, a mais simples comparação entre as legislações de países diversos pode demonstrar ao jurista o que representa esse livre consentimento. Nos países onde a lei assegura aos filhos uma parte da herança da fortuna paterna, e onde, por conseguinte, eles não podem ser deserdados - na Alemanha, nos países que seguem o direito francês, etc. - os filhos necessitam do consentimento dos pais para contrair matrimônio. Nos países onde se pratica o direito inglês, de acordo com o qual o consentimento paterno não é uma condição legal para o casamento, os pais gozam de absoluta liberdade de testar, e podem, caso queiram, deserdar os filhos. Está claro que, apesar disso, e talvez por isso mesmo, a liberdade para contrair matrimônio, entre as classes que têm algo a herdar, não é, de fato, nem um pouquinho maior na Inglaterra e na América do que na França e na Alemanha.
Não é melhor o estado de coisas quanto à igualdade jurídica do homem e da mulher no casamento. A desigualdade legal, que herdamos de condições sociais anteriores, não é causa e sim efeito da opressão econômica da mulher. No antigo lar comunista, que compreendia numerosos casais com seus filhos, a direção do lar, confiada às mulheres, era uma indústria socialmente tão necessária quanto a busca de víveres, de que ficavam encarregados os homens. As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda mais, com a família individual monogâmica. O governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada mais tinha a ver com ele. O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se na primeira criada, sem mais tomar parte na produção social. Só a grande indústria de nossos dias lhe abriu de novo - embora apenas para a proletária - o caminho da produção social. Mas isso se fez de maneira tal que, se a mulher cumpre os seus deveres no serviço privado da família, fica excluída do trabalho social e nada pode ganhar; e, se quer tomar parte na indústria social e ganhar sua vida de maneira independente, lhe é impossível cumprir com as obrigações domésticas. Da mesma forma que na fábrica, é isso que acontece à mulher em todos os setores profissionais, inclusive na medicina e na advocacia. A família individual moderna baseia-se na escravidão doméstica, franca ou dissimulada, da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas moléculas são as famílias individuais.
Hoje, na maioria dos casos, é o homem que tem que ganhar os meios de vida, alimentar a família, pelo menos nas classes possuidoras; e isso lhe dá uma posição dominadora, que não exige privilégios legais especiais. Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. No mundo industrial, entretanto, o caráter específico da opressão econômica que pesa sobre o proletariado não se manifesta em todo o seu rigor senão quando suprimidos todos os privilégios legais da classe dos capitalistas e juridicamente estabelecida a plena igualdade das duas classes. A república democrática não suprime o antagonismo entre as duas classes; pelo contrário, ela não faz senão proporcionar o terreno no qual o combate vai ser decidido. De igual maneira, o caráter particular do predomínio do homem sobre a mulher na família moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva entre ambos, não se manifestarão com toda a nitidez senão quando homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a reincorporação de todo o sexo feminino á indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade econômica da sociedade.
Como vimos, há três formas principais de matrimônio, que correspondem aproximadamente aos três estágios fundamentais da evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio por grupos, à barbárie, o matrimônio sindiásmico, e à civilização corresponde a monogamia com seus complementos: o adultério e a prostituição. Entre o matrimônio sindiásmico e a monogamia, intercalam-se, na fase superior da barbárie, a submissão das mulheres escravas aos homens e a poligamia.
Conforme ficou demonstrado por tudo que foi exposto, a peculiaridade do progresso manifestado nessa sucessão de formas de matrimônio consiste em que se foi tirando cada vez mais às mulheres (mas não aos homens) a liberdade sexual do matrimônio por grupos. Com efeito, o matrimônio por grupos continua existindo, ainda hoje, para os homens. Aquilo que para a mulher é um crime de graves conseqüências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, ou, quando muito, uma leve mancha moral 'que se carrega com satisfação. Quanto mais o heterismo antigo se modifica, porém, em nossa época, pela produção capitalista de mercadorias á qual se adapta - mais se transforma em franca prostituição e mais desmoralizadora se torna a sua influência. E, para dizer a verdade, desmoraliza muito mais aos homens que às mulheres. A prostituição, entre as mulheres, degrada apenas as infelizes que caem em suas garras, e mesmo a .estas num grau menor do que se costuma julgar. Em compensação, envilece o caráter do sexo masculino inteiro. Nessas circunstâncias, é de se advertir que, em noventa por cento dos casos, o noivado prolongado é uma verdadeira escola preparatória para a infidelidade conjugal.
Caminhamos presentemente para uma revolução social, em que as atuais bases econômicas da monogamia vão desaparecer, tão seguramente como vão desaparecer as da prostituição, complemento daquela. A monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos - as de um homem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem; tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor empecilho á poligamia, oculta ou descarada, deste. Mas a revolução social iminente, transformando pelo menos a imensa maioria das riquezas duradouras hereditárias - os meios de produção - em propriedade social, reduzirá ao mínimo todas essas preocupações de transmissão por herança. E agora cabe a pergunta: tendo surgido de causas econômicas, a monogamia desaparecerá quando desaparecerem essas causas?
Poder-se-ia responder, e não sem fundamento: longe de desaparecer, antes há de se realizar plenamente a partir desse momento. Porque com a transformação dos meios de produção em propriedade social desaparecem o trabalho assalariado, o proletariado, e, conseqüentemente, a necessidade de se prostituírem algumas mulheres, em número estatisticamente calculável. Desaparece a prostituição e, em lugar de decair, a monogamia chega enfim a ser uma realidade - também para os homens.
Em todo caso, modificar-se-á muito a posição dos homens. Mas, também, há de sofrer profundas transformações a das mulheres, a de todas elas. Quando os meios de produção passarem a ser propriedade comum, a família individual deixará de ser a unidade econômica da sociedade. A economia doméstica converter-se-á em indústria social. O trato e a educação das crianças tornar-se-ão público; a sociedade cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam legítimos ou naturais. Desaparecerá, assim, o temor das "conseqüências", que é hoje o mais importante motivo social tanto do ponto de vista moral como do ponto de vista econômico - que impede uma jovem solteira de se entregar livremente ao homem que ama. Não bastará isso para que se desenvolvam, progressivamente, relações sexuais mais livres, e também para que a opinião pública se torne menos rigorosa quanto à honra das virgens e à desonra das mulheres ? E por último: não vimos que, no mundo moderno, a prostituição e a monogamia, ainda que antagônicas, são inseparáveis, como pólos de uma mesma ordem social? Pode a prostituição desaparecer sem levar consigo, na queda, a monogamia ?
É agora que intervém um elemento novo, um elemento que existia no máximo em embrião, quando nasceu a monogamia: o amor sexual individual.
Antes da Idade Média, não se pode dizer que existisse amor sexual individual. É óbvio que a beleza pessoal, a intimidade, as afinidades, etc. deviam despertar nos indivíduos de sexos diferentes o desejo de relações sexuais; que, tanto para os homens como para as mulheres, não era de todo indiferente com quem ter as relações mais íntimas. Mas daí ao amor sexual moderno ainda vai uma grande distância. Em toda a antiguidade, são os pais que combinam os casamentos, em vez dos interessados; e estes conformam-se, tranqüilamente. O pouco amor conjugal que a antiguidade conhece não é uma inclinação subjetiva, e sim, mais concretamente, um dever objetivo; não é a base, e sim o complemento do matrimônio. O amor, no sentido moderno da palavra, somente se apresenta na antiguidade fora da sociedade oficial. Os pastores, cujas alegrias e penas de amor nos são cantadas por Teócrito ou Moscos, e por Longo no seu Dafne e Cloé, não passam de simples escravos que não têm participação no Estado, esfera em que se move o cidadão livre. Mas, excluídos os escravos, não encontramos relações amorosas senão como um produto da decomposição do mundo antigo, quando este já está em pleno declínio; e são relações mantidas com mulheres que também vivem fora da sociedade oficial, hetairas, isto é, estrangeiras ou libertas: em Atenas, às vésperas de sua queda, e em Roma, sob os imperadores. Se havia ali relações amorosas entre cidadãos e cidadãs livres, todas eram mero adultério. E o amor sexual, tal como nós o entendemos, era algo tão pouco importante para o velho Anacreonte - o cantor clássico do amor na antiguidade -, que mesmo o sexo da pessoa amada lhe era completamente indiferente.
O nosso amor sexual difere essencialmente do simples desejo sexual, do ecos dos antigos. Em primeiro lugar, porque supõe reciprocidade no ser amado, igualando, nesse particular, a mulher e o homem, ao passo que no ecos antigo se fica longe de consultá-la sempre. Em segundo lugar, o amor sexual atinge um grau de intensidade e de duração que transforma em grande desventura, talvez a maior de todas, para os amantes, a falta de relações íntimas ou a separação; para que se possuam não recuam diante de coisa alguma e arriscam mesmo suas vidas, o que não acontecia na antiguidade, senão em caso de adultério. E, por fim, surge um novo critério moral para jurar as relações sexuais. Já não se pergunta apenas - "São legítimas ou ilegítimas ?" - pergunta-se também: "São filhas do amor e de um afeto recíproco ?" É evidente que, na prática feudal ou burguesa, esse critério não é mais respeitado do que qualquer outro critério moral; passa por cima dele; equivalente aos demais, é reconhecido em teoria, no papel. E, por ora, não se pode pedir mais.
A Idade Média parte do ponto em que se deteve a Antigüidade, com seu amor sexual em embrião, isto é, parte do adultério. Já descrevemos o amor cavalheiresco, que inspirou Tagelieder. Deste amor, que tende a destruir o matrimônio, ao amor que lhe há de servir de base, há um longo caminho que a cavalaria jamais percorreu até o fim. Mesmo quando passamos dos frívolos povos latinos aos virtuosos alemães, vemos, no poema dos Nibelungos, que Krimhilda, embora esteja secretamente apaixonada por Siegfried e este por ela, quando Gunther lhe anuncia que a prometeu a um cavaleiro cujo nome não diz, responde apenas: "Não me precisais suplicar, farei aquilo que me ordenais; estou disposta, senhor, de boa-vontade, a unir-me àquele que me dais por marido. Não ocorre, de modo algum, a Krimhilda a idéia de que seu amor possa ser levado em conta naquele assunto. Gunther pede a mão de Brunilda e Etzel a de Krimhilda, sem jamais as terem visto. Do mesmo modo, em Gutrun, Sigebant da Irlanda intenta casar-se com a norueguesa Ute, Hetel de Hegelingen com Hilda da Irlanda e, finalmente, Siegfried de Morlândia, Hartmut da Ormânia e Herwig da Seelândia, pedem, os três, a mão de Gutrun; e só aqui acontece que esta se pronuncia livremente pelo último. Normalmente, a noiva do jovem príncipe é escolhida pelos pais dele, se ainda vivem, ou se não pelo próprio príncipe, aconselhado pelos grandes senhores feudais cuja opinião tem muito peso nesses casos. E certamente não pode ser de outro modo. Para o cavaleiro ou barão, como também para o príncipe, o matrimônio é um ato político, uma questão de aumento do poder mediante novas alianças; o interesse da Casa é que decide, não as inclinações do indivíduo. Como poderia, assim, caber ao amor a última palavra na determinação dos casamentos ?
O mesmo acontece com os burgueses das corporações, nas cidades da Idade Média. Os próprios privilégios que os protegem, as cláusulas dos regulamentos gremiais, as complicadas fronteiras que os separam legalmente, ora de outras corporações, ora de seus companheiros da mesma corporação, ou dos seus oficiais e aprendizes, tornavam bastante estreito o círculo em que podiam buscar esposas adequadas. Nesse complexo sistema, evidentemente, não era o gosto pessoal e sim a conveniência de família que determinava qual a mulher que mais convinha.
Na maioria dos casos, portanto, e até o final da Idade Média, o matrimônio continuou sendo o que tinha sido desde sua origem: um contrato não firmado pelas partes interessadas. A princípio, vinha-se ao mundo já casado com todo um grupo de seres do outro sexo. Depois, na forma posterior de matrimônio por grupos, é de se crer que as condições fossem análogas, mas com estreitamento progressivo do círculo. No matrimônio sindiásmico, é regra que as mães combinem entre si o casamento de seus filhos; também aqui, o fator decisivo é o desejo de que os novos laços de parentesco robusteçam a posição do jovem par na gens e na tribo. E., quando a propriedade privada se sobrepôs à propriedade coletiva, quando os interesses da transmissão por herança fizeram nascer a preponderância do direito paterno e da monogamia, o matrimônio começou a depender inteiramente de considerações econômicas. Desaparece a forma de matrimônio por compra, mas, em essência, continua sendo praticado cada vez mais, e de modo que não só a mulher tem seu preço, como também o homem, embora não segundo suas qualidades pessoais e sim conforme a importância de seus bens. Na prática, e desde o princípio, se havia alguma coisa inconcebível para as classes dominantes era que a inclinação mútua dos interessados pudesse ser a razão por excelência do matrimônio. Isto só se passava nos romances ou entre as classes oprimidas - que não se contavam para nada.
Tal era a situação com que se encontrou a produção capitalista quando, a partir da era dos descobrimentos geográficos, se pôs a conquistar o domínio do mundo através do comércio universal e da indústria manufatureira. É de se supor que este modo de matrimônio lhe conviesse excepcionalmente, e isso era realmente verdade. E, entretanto - a ironia da história do mundo é insondável - seria precisamente o capitalismo que abriria nesse modo de matrimônio a brecha decisiva. Ao transformar todas as coisas em mercadorias, a produção capitalista destruiu todas as antigas relações tradicionais e substituiu os costumes herdados e os direitos históricos pela compra e venda, pelo "livre" contrato. O jurisconsulto inglês H. S. Maine acreditou ter feito um descobrimento extraordinário ao dizer que nosso progresso em relação às épocas anteriores consiste em que passamos from status to contract, isto é, de uma ordem de coisas herdada para outra livremente consentida uma afirmação que, na medida em que é correta, já se encontrava de há muito no Manifesto Comunista.
Mas, para firmar contratos, é necessário que haja pessoas que possam dispor livremente de si mesmas, de suas ações e de seus bens, e que se defrontem em igualdade de condições. Criar essas pessoas "livres" e "iguais" foi exatamente uma das principais tarefas da produção capitalista. Apesar de que, no começo, isto não se fez senão de uma maneira meio inconsciente e, além do mais, sob o disfarce da religião, a partir da Reforma luterana e calvinista, ficou firmemente assentado o principio de que o homem não é completamente responsável por suas ações senão quando as pratica com pleno livre arbítrio, e que é um dever ético a oposição a tudo que o constrange prática de um ato imoral. Mas como pôr de acordo esse princípio com as práticas, usuais até então, para contratar o casamento ? Segundo o conceito burguês, o matrimônio era um contrato, uma questão de Direito, e certamente a mais importante de todas, pois dispunha do corpo e da alma de dois seres humanos para toda a vida. É verdade que, naquela época, o matrimônio era o acordo formal de duas vontades; sem o "sim" dos interessados, nada se fazia. Sabia-se, contudo, muito bem, como se obtinha o "sim" e quais eram os verdadeiros autores do matrimônio. Mas, uma vez que para todos os demais contratos se exigia a liberdade real para decidir, por que não era exibida a liberdade neste contrato ? Os jovens que deviam ser unidos não tinham também o direito de dispor livremente deles mesmos, de seu corpo e de seus órgãos ? Não se havia posto em moda, graças á cavalaria, o amor sexual ?Contra o amor adúltero da cavalaria, não seria o amor conjugal a verdadeira forma burguesa do amor? Mas, se o dever dos esposos era o amor recíproco, não seria dever dos que se amavam o de não casarem senão um com o outro, e não com alguma outra pessoa qualquer? E este direito dos que se amavam não seria superior ao direito do pai e da mãe, dos parentes e demais "casamenteiros" tradicionais ? Desde o momento em que o direito á livre investigação pessoal penetrava na Igreja e na religião, poderia acaso deter-se ante a intolerável pretensão da velha geração de dispor do corpo, da alma, dos bens de fortuna, da ventura e da desventura da geração mais jovem ?
Forçosamente essas questões deveriam surgir numa época em que se afrouxavam todos os antigos vínculos sociais e em que eram sacudidos os fundamentos de todas as concepções tradicionais. A Terra havia se tornado rapidamente dez vezes maior; em lugar de apenas um quadrante do hemisfério, o globo inteiro se estendia agora ante os olhos dos europeus ocidentais, que se apressaram a tomar posse dos outros sete quadrantes. E, ao mesmo tempo que as antigas e estreitas fronteiras do país natal, caíam as milenárias barreiras impostas ao pensamento da Idade Média. Um horizonte infinitamente mais extenso se abria ante os olhos e o espírito do homem. Que importância podiam ter a reputação de honorabilidade e os respeitáveis privilégios corporativos, transmitidos de geração em geração, para o jovem que era atraído pelas riquezas das Índias, pelas minas de ouro e prata do México e do Potosi ? Aquela foi a época da cavalaria andante da burguesia; porque também esta teve o seu romantismo e o seu delírio amoroso, mas numa base burguesa e, em última análise, com objetivos burgueses.
Assim, sucedeu que a burguesia nascente, sobretudo a dos países protestantes, onde se sacudiu de uma maneira mais profunda a ordem de coisas existente, foi reconhecendo cada vez mais a liberdade de contrato para o matrimônio e pôs em prática a sua teoria, da maneira que descrevemos. O matrimônio continuou sendo um matrimônio de classe, mas no seio da classe concedeu-se aos interessados certa liberdade de escolha. E, no papel, tanto na teoria moral como nas narrações poéticas, nada ficou tão inquebrantavelmente estabelecido como a imoralidade de todo casamento não baseado num amor sexual recíproco e num contrato de cônjuges efetivamente livres. Em resumo: proclamava-se como um direito do ser humano o matrimônio por amor, e não só como droit de I’homme, mas também, e por exceção, como um droit de la femme..
Mas este direito humano diferia em um ponto de todos os demais chamados direitos humanos. Ao passo que estes, na prática, estavam reservados para a classe dominante - a burguesia - e reduziam-se direta ou indiretamente a letra morta para a classe oprimida - o proletariado - , aqui se confirma ainda uma vez a ironia da história. A classe dominante continuou submetida às influências econômicas conhecidas e, somente por exceção, apresenta casos de casamento realizados verdadeiramente com toda a liberdade; enquanto que esses Casamentos, como já vimos, constituem a regra nas classes oprimidas.
O matrimônio, pois, só se realizará com toda a liberdade quando, suprimidas a produção capitalista e as condições, de propriedade criadas por ela, forem removidas todas as considerações econômicas acessórias que ainda exercem uma influência tão poderosa na escolha dos esposos. Então, o matrimônio já não terá outra causa determinante que não a inclinação recíproca.
E, desde que o amor sexual é, por sua própria natureza, exclusivista - embora em nossos dias esse exclusivismo só se realize plenamente sobre a mulher - o matrimônio baseado no amor sexual será, por sua própria natureza, monogâmico. Vimos quanta razão tinha Bachofen em considerar o progresso do matrimônio por grupos ao matrimônio por pares como obra devida sobretudo à mulher; apenas a passagem do casamento sindiásmico à monogamia pode ser atribuída ao homem, e historicamente consistiu, na essência, num rebaixamento da posição das mulheres e numa facilitação da infidelidade dos homens. Por isso, quando chegarem a desaparecer as considerações econômicas em virtude das quais as mulheres foram obrigadas a aceitar essa infidelidade masculina habitual - a preocupação pela própria subsistência e, ainda mais, pelo futuro dos filhos - a igualdade alcançada pela mulher, a julgar por toda a nossa experiência anterior, influirá muito mais no sentido de tornar os homens monógamos do que no de tornar as mulheres poliandras.
Mas o que, sem sombra de dúvida, vai desaparecer da monogamia é o conjunto dos caracteres que lhe foram impressos pelas relações de propriedade a que deve sua origem. Esses caracteres são, em primeiro lugar, a preponderância do homem e, depois, a indissolubilidade do matrimônio. A preponderância do homem no matrimônio é conseqüência evidentemente de sua preponderância econômica e desaparecerá por si mesma com esta última. A indissolubilidade do matrimônio é conseqüência, em parte, das condições econômicas que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da época em que, mal compreendida ainda, a vinculação dessas condições econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião. Atualmente, já está fendida por mil lados. Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o matrimônio onde o amor persiste. Mas a duração do acesso de amor sexual é muito variável, segundo os indivíduos, particularmente entre os homens; em virtude disso, quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo amor apaixonado, o divórcio será um benefício, tanto para ambas as partes como para a sociedade. Apenas deverá poupar-se ao casal o ter que passar pelo lodaçal inútil de um processo de divórcio.
Assim, pois, o que podemos conjecturar hoje acerca da regularização das relações sexuais após a iminente supressão da produção capitalista é, no fundamental, de ordem negativa, e fica limitado principalmente ao que deve desaparecer. Mas o que sobreviverá ? Isso se verá quando uma nova geração tenha crescido: uma geração de homens que nunca se tenham encontrado em situação de comprar, à custa de dinheiro, nem com a ajuda de qualquer outra força social, a conquista de uma mulher; e uma geração de mulheres que nunca se tenham visto em situação de se entregar a um homem em virtude de outras considerações que não as de um amor real, nem de se recusar a seus amados com receio das conseqüências econômicas que isso lhes pudesse trazer. E, quando essas gerações aparecerem, não darão um vintém por tudo que nós hoje pensamos que elas deveriam fazer. Estabelecerão suas próprias normas de conduta e, em consonância com elas, criarão uma opinião pública para julgar a conduta de cada um. E ponto final.
Voltemos, todavia, a Morgan, de quem nos afastamos muito. O estudo histórico das instituições sociais que se desenvolveram durante o período da civilização excede os limites de seu livro. Por isso, ele se ocupa muito pouco dos destinos da monogamia durante este período. Também ele vê na evolução da família monogâmica um progresso, uma aproximação da plena igualdade de direitos entre ambos os sexos, sem considerar, entretanto, que esse objetivo tenha sido alcançado. Mas - diz - "se se reconhece o fato de que a família tenha atravessado sucessivamente quatro formas e se encontra atualmente na quinta forma, coloca-se a questão de saber se esta forma pode ser duradoura no futuro. A única coisa que se pode responder é que a família deve progredir na medida em que progrida a sociedade, que deve modificar-se na medida em que a sociedade se modifique; como sucedeu até agora. A família é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema. Tendo a família monogâmica melhorado a partir dos começos da civilização e, de uma maneira muito notável, nos tempos modernos, é lícito pelo menos supor que seja capaz de continuar seu aperfeiçoamento até que chegue à igualdade entre os dois sexos. Se, num futuro remoto, a família monogâmica não mais atender às exigências sociais, é impossível predizer a natureza da família que lhe sucederá".
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(1) Bachofen prova quão pouco compreendeu daquilo que descobrira, ou antes adivinhara, ao designar tal estado primitivo com o nome de “heterismo”. Quando os gregos introduziram esta palavra no seu idioma, o heterismo significava para eles contato carnal de homens solteiros ou monógamos com mulheres não casadas; o heterismo supunha sempre, portanto, uma forma definida de matrimônio, fora da qual esse comércio sexual se realiza, e admite a prostituição, pelo menos como possibilidade. Jamais a palavra foi empregada em sentido diverso: assim a emprego eu, assim a usou Morgan. Bachofen leva todas as suas importantíssimas descobertas a um plano de inacreditável misticismo, pois imagina que as relações entre homens e mulheres, a transformarem-se com a evolução histórica, têm origem nas idéias religiosas da humanidade em cada época, e não nas suas condições reais de existência. (Nota de Engels)
(2) Em uma carta escrita na primavera de 1882, Marx condena, nos mais ásperos termos, o falseamento dos tempos primitivos nos Nibelungos de Wagner. “Onde já se viu que o irmão abrace a irmã como uma noiva?” A estes “deuses da luxúria” wagnerianos, que, no estilo moderno, tornam mais picantes as suas aventuras amorosas com certa dose de incesto, responde Marx: “Nos tempos primitivos, a irmã era esposa e isso era moral”. (Nota de Engels)
(3).Os vestígios das relações sexuais sem restrições, que Bachofen acredita ter descoberto no seu “Sumpfzeugang”, referem-se ao matrimônio por grupos, do qual é hoje impossível duvidar. “Se Bachofen acha licenciosos os matrimônios punaluanos, um homem daquela época consideraria a maior parte dos casamentos atuais entre primos próximos ou distantes, por linha paterna ou materna, tão incestuoso como os casamentos entre irmãos consangüíneos”. (Marx). (Nota de Engels)
(Continuação)
III
A GENS IROQUESA
Chegamos, agora, a outro descobrimento de Morgan, pelo menos tão importante quanto a reconstituição da forma primitiva da família através dos sistemas de parentesco. A demonstração de que os grupos de consangüíneos, designados por nomes de animais no seio de uma tribo de índios americanos, são essencialmente idênticos às genes dos gregos e às gentes dos romanos; de que a forma americana é a forma original da gens, sendo a forma greco-romana uma forma posterior, derivada; de que toda a organização social dos gregos e romanos dos tempos primitivos em gens, fratria e tribo encontra seu fiel paralelo na organização dos indígenas americanos; de que a gens ( na medida em que podemos julgar pelas nossas fontes atuais de conhecimento ) é uma instituição comum a todos os bárbaros até sua passagem à civilização e mesmo depois dela; essa demonstração esclareceu, de repente, as partes mais difíceis da antiga história grega e romana e, ao mesmo tempo, revelou-nos os traços fundamentais do regime social da época primitiva, anterior à criação do Estado. Por muito simples que isso pareça depois de conhecido, só muito recentemente Morgan o descobriu. Em seu trabalho anterior, publicado em 1871, ele ainda não tinha conseguido desvendar esse segredo, cujo descobrimento fez calar por algum tempo os historiadores ingleses da pré-história, normalmente loquazes.
A palavra latina gens, que Morgan usa para designar esse grupo de consangüíneos, procede, como a palavra grega de idêntico significado (genos), da raiz ariana comum gan (em alemão - onde, segundo a regra, o g ariano é substituído pelo k - kan), que significa "engendrar". Da mesma forma, significam linhagem ou descendência as palavras gens, em latim; genos, em grego; dschanas, em sânscrito; kuni, em gótico (consoante a regra já referida); kyn, no antigo escandinavo e anglo-saxão; kin, em inglês; e künne, no médio-alto-alemão. Contudo, gens em latim e genos em grego empregam-se especialmente para designar esse grupo que se jacta de constituir uma descendência comum ( do pai comum da tribo, no presente caso) e que está unido por certas instituições sociais e religiosas, formando uma comunidade particular, cuja origem e natureza permaneceram até agora, apesar de tudo, obscuras para todos os nossos historiadores.
Já vimos anteriormente, na família punaluana, o que é a gens em sua forma primitiva. Compõe-se de todas as pessoas que, pelo matrimônio punaluano, e de acordo com as concepções que nele necessariamente dominam, formam a descendência reconhecida de uma determinada antepassada, fundadora da gens. Sendo incerta a paternidade nessa forma de família, é válida apenas a filiação feminina. Como os irmãos não podem casar com as irmãs, e - só com mulheres de outra origem, os filhos procriados por essas mulheres ficam fora da gens, por força do direito materno. Assim, não permanecem no grupo senão os descendentes das filhas de cada geração; os descendentes dos filhos passam às gens de suas respectivas mães. Que sucede, então, com este grupo consangüíneo, desde que constituído como grupo à parte, em face de grupos similares no seio de uma mesma tribo ?
Como forma clássica dessa gens primitiva, Morgan toma a dos iroqueses e, em geral, a dos senekas. Nessa tribo há oito gens, cada uma das quais com o nome de um animal: 1ª, lobo; 2ª, urso; 3ª, tartaruga; 4ª, castor; 5ª, cervo; 6ª, narceja; 7ª, garça; 8ª, falcão. Em todas as gens há os seguintes costumes:
1.São eleitos o sachem ( dirigente em tempo de paz) e o caudilho (chefe militar). O sachem deve ser escolhido dentro da própria gens e suas funções são internamente hereditárias, no sentido de serem imediatamente ocupadas em caso de vacância. O chefe militar pode ser escolhido fora da gens e, ás vezes, seu posto pode permanecer vago. Nunca é eleito sachem o filho do anterior, dada a vigência entre os iroqueses do direito materno, segundo o qual o filho pertence a outra gens, mas são eleitos freqüentemente o irmão do sachem anterior ou o filho de sua irmã. Todos, homens e mulheres, tomam parte na eleição. Mas ela deve ser ratificada pelas outras sete gens, e só depois de cumprida .esta condição é que o eleito é empossado, pelo conselho comum de toda a federação iroquesa. Mais adiante se verá a importância disso. O poder do sachem no seio da gens é paternal, de caráter puramente moral. Ele não dispõe de qualquer meio coercitivo. Além disso, por força mesmo de seu posto, é membro do conselho da tribo dos senekas e do conselho da federação de todos os iroqueses. O chefe militar unicamente pode dar ordens nas expedições militares.
2. A gens pode depor, à sua vontade, o sachem e o chefe militar. Nessas ocasiões, igualmente, tomam parte na votação tanto os homens como as mulheres. Os chefes depostos passam a ser, de imediato, simples guerreiros, pessoas privadas, como as demais. Também o conselho da tribo pode depor o sachem, mesmo contra a vontade das gens.
3. Nenhum membro da geras tem direito a casar-se no seio dela. Esta é a regra fundamental da gens, o vínculo que a mantém unida; é a expressão negativa do parentesco consangüíneo, parentesco muito positivo, em virtude da qual os indivíduos nela compreendidos realmente chegam a constituir uma gens. Com a descoberta deste simples fato, Morgan tornou clara, pela primeira vez, a natureza da gens. Como esta tinha sido pouco compreendida até então, dão-nos prova os relatos anteriormente feitos sobre os selvagens e as bárbaros, relatos onde os diferentes grupamentos que formavam a organização gentílica são por ignorância e indiscriminadamente denominados tribo, clã, thum, etc., e dos quais se dizia, de vez em quando, que no seio deles era proibido o casamento. Essa a origem da irreparável confusão, na qual Mac Lennan, como um Napoleão, pôs ordem com esta sentença inapelável: todas as tribos se dividem em tribos nas quais o casamento entre seus membros é proibido (exógamas) e tribos nas quais o casamento é permitido (endógamas). E, depois de ter embrulhado definitivamente as coisas, lançou-se às mais profundas investigações para descobrir qual das duas categorias fantásticas de sua invenção - a exogamia e a endogamia - era a mais antiga. Este absurdo desapareceu automaticamente com o descobrimento da gens baseada no parentesco consangüíneo e a conseqüente impossibilidade do casamento de seus membros entre si. É óbvio que, na fase em que encontrarmos os iroqueses, a proibição do matrimônio dentro da gens é observada de maneira inflexível.
4. A propriedade dos que faleciam passava aos demais membros da gens, pois não devia sair dela. Dado o montante reduzido do que um iroquês pudesse deixar por sua morte, a herança era dividida entre os parentes gentílicos mais próximos, quer dizer, entre seus irmãos e irmãs carnais, e o irmão de sua mãe, se o defunto era homem; e, se era mulher, entre seus filhos e irmãs carnais, excluídos os irmãos da falecida. Por ser assim, marido e mulher não podiam herdar um do outro, nem os filhos podiam herdar do pai.
5. Os membros da gens deviam-se mutuamente ajuda e proteção, sobretudo auxílio para vingar injúrias feitas por estranhos. Cada indivíduo confiava sua segurança à proteção da gens - e podia fazê-lo; qualquer agravo contra ele atingia a gens inteira. Daí, dos laços de sangue na gens, nasceu a obrigatoriedade da vingança, reconhecida integralmente pelos iroqueses. Se um estranho matava um dos membros da gens, todos os outros estavam obrigados a vingá-lo. Procurava se, primeiro, uma mediação; a gens do assassino se reunia em conselho e fazia propostas de solução pacífica à gens da vítima, oferecendo, quase sempre, a expressão do seu pesar e alguns valiosos presentes; se estes fossem aceitos, o assunto estava encerrado. Em caso contrário, a gens ofendida designava um ou mais vingadores, cujo dever era perseguir e matar o assassino. Se isto acontecia, a gens deste último não tinha qualquer direito a queixar-se - estavam acertadas as contas.
6. A gens tem nomes característicos, ou uma série de nomes, que somente ela, em toda a tribo, tem o direito de usar, de maneira que o nome de um indivíduo indica imediatamente a gens a que ele pertence. Um nome gentílico implica sempre, pois, em direitos gentílicos.
7. A gens pode adotar estranhos, admitindo-os, dessa maneira, na tribo. Os prisioneiros de guerra não condenados à morte, adotados por uma das gens, tornavam-se membros da tribo dos senekas, entrando na posse de todos os direitos gentílicos e tribais. Fazia-se a adoção por proposta individual de algum membro da gens, algum homem que tomava o estrangeiro por irmão ou irmã, ou alguma mulher que o tomava como filho. A admissão solene era necessária para confirmação. Freqüentemente, reforçavam-se as gens reduzidas em número por causas excepcionais, adotando em massa membros de outra gens, com o consentimento desta última. Entre os iroqueses, a admissão solene na gens fazia-se em sessão pública do conselho da tribo, o que tornava esta solenidade praticamente uma cerimônia religiosa.
8. É difícil provar nas gens índias a existência de solenidades religiosas especiais; e, no entanto, as cerimônias religiosas dos índios estão mais ou menos relacionadas com as gens. Nas seis festas anuais dos iroqueses, os sachens e os caudilhos militares, por força mesmo de seus cargos, eram. incluídos entre os "guardiães da fé" e exerciam funções sacerdotais.
9. A gens tem um lugar comum para enterrar seus mortos. O dos iroqueses do Estado de Nova York já desapareceu em meio ao cerco dos brancos, mas existiu outrora. E ainda existe entre outros índios, por exemplo, os tuscaroras, parentes próximos dos iroqueses. Mesmo quando cristãos, os tuscaroras têm no cemitério uma determinada fila de sepulturas para cada gens, de jeito que, ali, a mãe fica enterrada com os filhos numa fila e o pai em outra. E, também entre os iroqueses, toda a gens do morto vem ao enterro e se ocupa do túmulo, dos discursos fúnebres, etc.
10. A gens tem um conselho, a assembléia democrática de seus membros adultos, homens e mulheres, todos com o mesmo direito de voto. Esse conselho elege e depõe o sachem e o chefe militar, tal como os demais "guardiães da fé"; decide o preço do sangre (Wergeld) ou a vingança pelo assassinato de um membro da Gens; e adota os estrangeiros. Em síntese: é o poder soberano da gens.
Tais são as atribuições de uma típica gens indígena. "Seus membros são todos indivíduos livres, cada um obrigado a defender a liberdade dos outros; têm os mesmos direitos pessoais; nem os sachens nem os chefes militares pretendem ter qualquer espécie de preeminência; formam, no conjunto, uma coletividade fraternal, unida pelos vínculos de sangue. Liberdade, igualdade e fraternidade, esses são, embora nunca formulados, os princípios cordiais da gens, e esta última é por sua vez a unidade de todo um sistema social, a base da saciedade indígena organizada. Isso explica o indomável espírito de independência e a dignidade pessoal que toda a gente observa nos índios."
Na época do descobrimento da América, os índios de toda a América do Norte estavam organizados em gens, de acordo com o direito materno. Só em algumas tribos, como entre os dakotas, a gens havia desaparecido e, em outras, como entre os ojibwas e os omahas, estava organizada de acordo com o direito paterno.
Em numerosíssimas tribos indígenas que compreendem mais de cinco ou seis gens, encontramos três, quatro ou mais gens reunidas em um grupo especial, que Morgan, traduzindo fielmente o termo indígena para o seu correspondente grego, chama fratria (irmandade). Assim, os senekas têm duas fratrias; a primeira compreende a gens de 1 a 4 e a Segunda as gens de 5 a 8. Um estudo mais profundo mostra que estas fratrias representam quase sempre as gens primitivas em que se cindiu, no começo, a tribo; porque, dada a proibição do matrimônio no seio da gens, cada tribo devia necessariamente compreender pelo menos duas gens para ter uma existência independente. Na medida em que a tribo aumentava em número, cada gens tornava a se cindir em duas ou mais, que, desde então, apareciam, cada uma delas, como uma gens particular, ao passo que a gens primitiva, que abrange todas as gens-filhas, continua existindo como fratria. Entre os senekas e a maior parte dos índios, as gens de uma das fratrias são irmãs entre si, ao passo que as da outra são suas primas, nomes que - como vimos - têm no sistema de parentesco americano um significado muito real e muito expressivo. Originariamente, nenhum seneka podia casar-se no seio de sua fratria; entretanto, este costume desapareceu rapidamente, ficando limitada a proibição à gens. Segundo uma tradição que prevalece entre os senekas, o "urso" e o "cervo" foram as duas gens primitivas das quais surgiram, com o tempo, as demais. Uma vez sedimentada, essa nova organização foi se modificando de acordo com as necessidades. A fim de manter o equilíbrio, se se extinguiam as gens de uma fratria, fazia-se, às vezes, a incorporação a ela de gens inteiras de outras fratrias. Por isso, encontramos, em diferentes tribos, gens do mesmo nome agrupadas em fratrias distintas.
As funções da fratria entre os iroqueses são em parte sociais, em parte religiosas: 1) O jogo da pelota é disputado pelas fratrias, uma contra a outra; cada uma designa os seus melhores jogadores, e os demais índios, formando grupos por fratrias, assistem à peleja e apostam na vitória dos seus. 2) No conselho da tribo, sentam-se juntos os sachens e os chefes militares de cada fratria, colocando-se frente a frente os dois grupos. E cada orador se dirige aos representantes de cada fratria como a uma corporação distinta. 3) Se, na tribo, se cometia um homicídio, e o assassino e a vítima não pertenciam à mesma fratria, a geras ofendida apelava freqüentemente para as suas geras irmãs, que celebravam um conselho de fratria e se dirigiam à outra fratria como corporação, com o objetivo de que por esta fosse igualmente convocado um conselho para se resolver o assunto. Neste caso, a fratria aparece de novo como a gens primitiva, e com muito maiores probabilidades de êxito que a gens sozinha, sua filha, mais débil. 4) Em caso de falecimento de pessoa importante, a fratria aposta ficava encarregada de organizar e dirigir o funeral, para que a fratria do defunto dele participasse como conjunto de parentes que o choravam. Se morria um sachem era a fratria oposta que anunciava a vacância de seu cargo no conselho federal dos iroqueses. 5) O conselho da fratria intervinha igualmente quando se elegia um sachem. A ratificação do eleito pelas gens irmãs era usualmente considerada quase segura; mas as gens da outra fratria podiam opor-se à eleição. Nesse caso, reunia-se o conselho desta fratria e, se a oposição fosse mantida, a eleição era declarada nula. 6) Os iroqueses tinham, a princípio, mistérios religiosos particulares, que os brancos chamavam "medicine lodges". Tais mistérios eram celebrados entre os senekas por duas associações religiosas, correspondentes às duas fratrias, com um ritual especial para a iniciação de novos membros. 7 ) Se, como é quase certo, as quatro linhagens (gens) que habitavam, ao tempo da conquista, os quatro bairros de Tlacalá, eram quatro fratrias, isto prova que as fratrias constituíam também unidades militares, como acontecia entre os gregos e em outras uniões gentílicas análogas entre os germanos; cada uma dessas quatro linhagens ia à guerra como exército independente, com seu uniforme e sua bandeira própria, sob comando de um chefe próprio.
Assim como várias gens formam uma fratria, de igual modo, na forma clássica, várias fratrias constituem uma tribo; em alguns casos nas tribos mais débeis, falta o elo intermediário, a fratria. Que é, pois, que caracteriza uma tribo indígena da América ?
1. Um território próprio e um nome particular. Fora do local onde estava instalada, cada tribo possuía, ainda, um extenso território para a caça e a pesca. Além deste, estendia-se uma ampla zona neutra, que chegava até ó território da tribo mais próxima, zona que era mais estreita entre as tribos de mesma língua, e, mais larga entre as que não possuíam o mesmo idioma. Esta zona vinha a ser o mesmo que o bosque limítrofe dos germanos, o deserto que os suevos de César criavam ao redor de seu território, o isarnholt (em dinamarquês jarnved, limes Danicus) entre dinamarqueses e alemães, o sachsenwald e o branibor (eslavo: bosque protetor), que deu seu nome ao Brandemburgo, entre alemães e eslavos. Este território, compreendido dentro de fronteiras tão incertas, era , o país comum da tribo, reconhecido como tal pelas tribos vizinhas, e que ela mesma defendia contra os invasores. Na maioria dos casos, a imprecisão das fronteiras não suscitou inconvenientes na prática senão quando a população cresceu de modo considerável. Os nomes das tribos parecem ser devidos ao acaso mais que a uma escolha intencional; com o tempo, sucedeu freqüentemente que uma tribo fosse conhecida entre suas vizinhas por um nome diferente daquele que ela mesma se dava, como ocorreu com os alemães, aos quais os celtas chamavam de germanos, tornando-se este o seu primeiro nome histórico coletivo.
2. Um dialeto particular, próprio só desta tribo. De fato, a tribo e o dialeto são substancialmente uma e a mesma coisa. A formação de novas tribos e novos dialetos, em conseqüência de uma cisão, acontecia ainda até há pouco tempo na América e não deve ter cessado por completo. Onde duas tribos enfraquecidas se fundem em uma só, ocorre excepcionalmente que, na mesma tribo, sejam falados dois dialetos muito próximos. A força numérica média das tribos americanas é de umas duas mil almas; entretanto, os cherokees contam aproximadamente vinte e seis mil, o maior número de índios nos Estados Unidos que falam o mesmo dialeto.
3. O direito de dar posse solene aos sachens e chefes militares eleitos pelas gens.
4. O direito de depô-los, ainda que contra a vontade das suas respectivas gens. Como os sachens e os chefes militares são membros do conselho tribal, esses direitos da tribo quanto a eles explicam-se por si mesmos. Onde se haja formado uma federação de tribos e onde o conjunto destas se ache representado por um conselho da federação esses direitos passam ao conselho.
5. Idéias religiosas (mitologia) e ritos comuns. "Os índios eram, á sua maneira bárbara, um povo religioso". Sua mitologia ainda não foi estudada criticamente. Personificavam, já, suas idéias religiosas (espíritos de todas as espécies), mas a fase inferior da barbárie em que estavam desconhece ainda as representações plásticas, os chamados ídolos. Há entre eles um culto da natureza, dos elementos, que tende para o politeísmo. As diferentes tribos tinham suas festividades regulares, com formas de culto determinadas, principalmente danças e jogos. A dança, principalmente, era parte essencial de todas as solenidades religiosas. Cada tribo celebrava separadamente suas próprias festas.
6. Um conselho de tribo para os assuntos comuns. Compunha-se dos sachens e chefes militares de todas as gens seus legítimos representantes, porquanto podiam sempre ser depostos e substituídos. O conselho deliberava em público, diante dos demais membros da tribo, aos quais se permitia tomar a palavra e expressar sua opinião; o conselho é que decidia. Como regra geral, o conselho ouvia todo assistente que desejasse falar; também as mulheres opinavam, através de um orador escolhido por elas. Entre os iroqueses as resoluções definitivas deviam ser tomadas por unanimidade, tal como para certas decisões nas comunidades das marcas alemãs. O conselho tribal ficava encarregado, particularmente, das relações com outras tribos. Recebia e mandava embaixadas, declarava a guerra e concluía a paz. Declarada a guerra, ela era sustentada principalmente por voluntários. Em princípio, cada tribo se considerava em estado de guerra com todas as outras com as quais não tivesse firmado expressamente um tratado de paz. As expedições contra tais inimigos eram organizadas, na maioria, por uns tantos guerreiros notáveis. Estes executavam uma dança de guerra, e todo aquele que os acompanhasse na dança manifestava, desse modo, seu desejo de participar da campanha. Formava-se em seguida o destacamento e se punha em marcha. Grupos de voluntários, igualmente, costumavam encarregar-se da defesa do território da tribo atacada. A partida e o regresso desses grupos de guerreiros davam sempre lugar a festividades públicas. Para tais expedições não era necessária a aprovação do conselho tribal, aprovação que não era dada nem pedida. Essas expedições eram exatamente como as expedições particulares das companhias germanas descritas por Tácito, com a diferença única de terem os grupos de guerreiros entre os germanos um caráter já mais fixo, constituindo um sólido núcleo já organizado em tempo de paz, e, em torno do qual, quando há guerra, se concentram os voluntários. Os destacamentos dessa espécie raramente são muito numerosos; mesmo as expedições indígenas mais importantes e de maiores distâncias eram realizadas com forças relativamente insignificantes. Quando se juntavam vários desses destacamentos para uma grande empresa, cada um deles obedecia a seu próprio chefe; a unidade do plano de campanha era assegurada, bem ou mal, pelo conselho desses chefes. Assim faziam a guerra os alemães do alto Reno no século IV, de acordo com a descrição de Amiano Marcelino.
7. Em algumas tribos, encontramos um chefe supremo (Oberhäuptling), cujas atribuições são sempre muito restritas. É um dos sachens que, no caso de se tornar necessária uma ação rápida, deve tomar medidas provisórias até que se possa reunir o conselho e deliberar em caráter definitivo. É um tênue embrião de poder executivo, semente que não vinga na evolução ulterior, pois o poder executivo sai na maioria dos casos, talvez em todos, do supremo chefe militar (obersten Heerführer) .
A grande maioria dos índios americanos não foi além da união em tribos. Estas, pouco numerosas, separadas umas das outras por vastas zonas fronteiriças e debilitadas por contínuas guerras, ocupavam imensos territórios bem pouco povoados. Aqui e ali, formavam-se alianças entre tribos consangüíneas, por força de necessidades momentâneas, com cuja extinção se acabavam também elas, as alianças. Em certas comarcas, no entanto, tribos aparentadas na origem e depois separadas ligaram-se em federações permanentes, dando assim o primeiro passo no sentido da formação de nações. Nos Estados Unidos, a forma mais desenvolvida de uma federação dessa natureza pode ser encontrada entre os iroqueses. Abandonando suas residências do oeste do Mississipi, onde provavelmente constituíam um ramo da grande família dos dakotas, estabeleceram-se, depois de longas peregrinações, no atual Estado de Nova York, divididos em cinco tribos: a dos senekas, a dos cayugas, a dos onondagas, a dos oneidas e a dos mohawks. Viviam da pesca, da caça e de uma rudimentar horticultura; residiam em aldeias, na maior parte fortificadas com estacadas. jamais excederam vinte mil criaturas, em número; e tinham o mesmo número de gens em cada tribo, falavam dialetos parecidíssimos da mesma língua e ocupavam um território continuo repartido entre as cinco tribos. Sendo de conquista recente este território, a cooperação dessas tribos na ação contra aquelas que tinham sido deslocadas era absolutamente natural. Nos primeiros anos do século quinze, no máximo, essa colaboração se converteu em uma "liga permanente", em uma confederação que, cônscia de sua nova força, não tardou em assumir um caráter agressivo; e ao chegar ao seu apogeu - por volta de 1675 – havia conquistado vastas regiões adjacentes, cujos habitantes em parte expulsou, transformando os restantes em tributários. A confederação iroquesa apresenta a organização social mais desenvolvida, alcançada pelos índios antes de superar a rase inferior da barbárie, excluídos, portanto, os mexicanos, neo-mexicanos e peruanos. As características principais da confederação eram as seguintes:
1. Aliança perpétua entre as cinco tribos consangüíneas, baseada na plena igualdade e na independência de cada uma delas relativamente aos assuntos internos. Esta consangüinidade constituía o verdadeiro fundamento da confederação. Das cinco tribos, três levavam o nome de tribos-mães e eram irmãs entre si, como o eram igualmente as outras duas, que se chamavam tribos-filhas. Três gens - as mais antigas - tinham ainda representantes vivos em todas as cinco tribos, ao passo que outras três gens tinham representantes em três tribos. Os membros de cada uma dessas gens eram irmãos entre si, em todas as cinco tribos. A língua comum, sem outras diferenças que não as de natureza dialetal, era a expressão e a prova da comunidade de origem.
2. O órgão da confederação era um conselho federal de cinqüenta sachens, todos de igual importância e dignidade; este conselho decidia, em última instância, todos os assuntos das tribos aliadas.
3. Esses cinqüenta títulos de sachem, quando constituída a confederação, foram distribuídos entre as tribos e as gens, aos representantes dos novos cargos, expressamente criados para as necessidades da confederação. Em caso de vacância de um desses cargos, a gens interessada elegia um substituto, que podia sempre ser deposto. Mas o direito de empossá-los pertencia ao conselho federal.
4. Estes sachens federais eram também sachens em suas tribos respectivas e tinham voz e voto no conselho da tribo.
5. Todas as decisões do conselho federal tinham que ser unânimes.
6. O voto dava-se por tribo, de modo que todas as tribos e todos os membros do conselho de cada tribo tinham que estar de acordo para que se pudesse tomar uma decisão válida.
7. Cada um dos cinco conselhos tribais podia convocar o conselho federal, mas este não podia convocar-se a si mesmo.
8. As sessões eram realizadas diante do povo reunido; cada iroquês podia tomar a palavra, mas as decisões eram tomadas só pelo conselho.
9. A confederação não tinha oficialmente um chefe com poder executivo.
10. No entanto, tinha dois chefes militares supremos, com iguais atribuições e poderes (os dois "reis" de Esparta, os dois cônsules de Roma).
Tal é toda a constituição social sob a qual viveram e vivem ainda os iroqueses há mais de quatrocentos anos. Dei a descrição dela feita por Morgan em todos os pormenores, porque aqui podemos estudar a organização de uma sociedade que não conhecia ainda o Estado. O Estado pressupõe um, poder público especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o compõem. Maurer reconhece com fiel instinto, na constituição da marca alemã, uma instituição puramente social, diferente, na essência, do Estado, ainda que mais tarde lhe tenha servido de base, em grande parte. Em todos os seus trabalhos Maurer observa o gradual desenvolvimento do poder público, não só a partir das constituições primitivas das marcas, aldeias, feudos e cidades, como também paralelamente a elas.
Os índios norte-americanos nos mostram como uma tribo originariamente unida se difunde pouco a pouco por um continente imenso; como, cindindo-se, as tribos convertem-se em povos, em grupos inteiros de tribos; como se modificam as línguas, não só até chegarem a ser incompreensíveis umas para as outras, como também até o desaparecimento de qualquer vestígio da primitiva unidade; como as próprias gens se fragmentam no seio das tribos, e como as gens-mães persistem sob forma de fratria; e como os nomes dessas tribos mais antigas se mantêm nas tribos mais distantes e há mais tempo separadas - o lobo e o urso ainda hoje são nomes gentílicos na maioria das tribos índias. De modo geral, a constituição acima descrita corresponde a todas as tribos, exceto aquelas muitas que não chegaram a organizar a confederação entre tribos parentes.
Dada a gens como unidade social, vemos, também, com que necessidade quase iniludível, porque natural, dela se deduz todo o sistema gens-fratria-tribo. Os três grupos são diferentes gradações de consangüinidade, cada um completo em si, tratando de seus assuntos próprios, mas suplementando igualmente os demais. O círculo dos assuntos compreendidos na esfera das três gradações abrange o conjunto dos negócios sociais da generalidade dos bárbaros na fase inferior. Sempre, portanto, que em um povo encontremos a gens como unidade social, deveremos encontrar uma organização tribal semelhante à que descrevemos; e onde não faltam as nossas fontes de informação - como entre gregos e romanos - não apenas a encontraremos, mas também nos convenceremos de que, em todas as partes onde essas fontes são deficientes, a comparação com a constituição social americana nos ajuda a esclarecer as maiores dúvidas e a desvendar os maiores enigmas.
Admirável essa constituição da gens, com toda a sua ingênua simplicidade! Sem soldados, policiais, nobreza, rei, governadores, prefeitos ou juízes, sem cárceres ou processos, tudo caminha com regularidade. Todas as querelas, todos, conflitos são dirimidos pela coletividade a que concernes, pela gens ou pela tribo, ou ainda pelas gens entre si. Só como último recurso - raras vezes empregado - aparece a vingança, da qual a nossa pena de morte é apenas uma forma civilizada, com as vantagens e os inconvenientes da civilização. Apesar de haver muito mais questões em comum do que no presente - a economia doméstica é feita em comum por uma série de famílias e de modo comunista; a terra é propriedade da tribo e os lares só dispõem, e temporariamente, de pequenas hortas - ainda assim, não é necessária nem sequer uma parte mínima da nossa vasta e complicada máquina administrativa. São os próprios interessados que resolvem as questões; e, na maioria dos casos, costumes seculares já tudo regulam. Não pode haver pobres nem necessitados: a família comunista e a gens têm consciência das suas obrigações para com os anciãos, os enfermos e os inválidos de guerra. Todos são iguais e livres, inclusive as mulheres. Ainda não há lugar para escravos e, como regra geral, não se subjugam tribos estrangeiras. Quando os iroqueses venceram, em 1651, os érios e as "nações neutras", propuseram-lhes que entrassem na confederação com iguais direitos; somente depois de terem os vencidos recusado a proposta é que foram expulsos de seu território. Que homens e que mulheres produziu semelhante sociedade é o que podemos ver na admiração de todos os brancos que lidaram com índios não degenerados, diante da dignidade pessoal, da retidão, da energia de caráter e da intrepidez desses bárbaros.
Recentemente, vimos na África exemplos dessa intrepidez. Os cafres de Zululándia, há alguns anos, e os núbios, há poucos meses (duas tribos entre as quais ainda não se extinguiram as instituições gentílicas), fizeram o que não saberia fazer tropa européia alguma. Armados apenas com lanças e dardos, sem armas de fogo e sob a chuva de balas dos fuzis de repetição da infantaria inglesa (reconhecida como a primeira do mundo no combate em formação cerrada), lançaram-se em cima das suas baionetas, semearam mais de uma vez o pânico entre ela e acabaram por derrotá-la, apesar da colossal desproporção das armas e de não terem, os nativos, nada semelhante a serviço militar e não saberem o que são exercícios militares. De sua capacidade e de sua resistência física, melhor dizem as queixas dos ingleses de que um cafre, em vinte e quatro horas, cobre maior distância do que um cavalo - e vai mais rápido. Como disse um pintor britânico: "Até o menor dos músculos desses homens sobressai, duro e acerado como fibra de chicote."
Tal era o aspecto dos homens e da sociedade humana, antes que se operasse a divisão em classes sociais. E, se compararmos a situação deles com a da imensa maioria dos homens civilizados de hoje, veremos que é enorme a diferença de condição entre o antigo e livre membro da gens - e o proletário ou o camponês atual.
Este é um aspecto da questão. Não esqueçamos, todavia, que essa organização estava condenada a desaparecer. Não foi além da tribo; a confederação de tribos já indica o princípio da sua decadência, conforme veremos, e como as tentativas feitas pelos iroqueses de submeter outras tribos mostraram. O que estava fora da tribo, estava fora da lei. Onde não havia tratado expresso de paz, imperava a guerra entre as tribos, e era feita com aquela crueldade que distingue o ser humano do resto dos animais, e que só mais tarde se suavizou pelo interesse. O regime da gens, no apogeu, como o vimos na América, supunha uma produção extremamente rudimentar e, por conseguinte, uma população muito disseminada por um vasto território - e, portanto, sujeição quase completa do homem à natureza exterior, que lhe aparecia como incompreensível e alheia ( o que se reflete na puerilidade de suas idéias religiosas). A tribo era a fronteira do homem, para os estranhos como para si mesmo: a tribo, a gens e suas instituições eram sagradas e invioláveis, constituíam um poder superior dado pela natureza, ao qual todo indivíduo ficava submetido sem reservas em seus sentimentos, idéias e atos. Por mais imponentes que nos pareçam, os homens de então mal se distinguiam uns dos outros; estavam, como diz Marx, presos ao cordão umbilical da comunidade primitiva. O poderio dessas comunidades primitivas não poderia deixar. de ser destruído e foi destruído. Desfez-se, contudo, por influências que desde o início nos aparecem como uma degradação, uma queda da singela grandeza moral da velha - sociedade gentílica. Os interesses mais vis - a baixa cobiça, a brutal avidez de prazeres, a sórdida avareza, o roubo egoísta da propriedade comum - inauguram a nova sociedade civilizada, a sociedade de classe; os meios mais ultrajantes minam e perdem a velha sociedade sem classes das gens: o furto, a violência, a perfídia e a traição. E a nova sociedade, através desses dois mil e quinhentos anos de sua existência, não tem sido senão o desenvolvimento de uma pequena minoria ás expensas de uma grande maioria explorada e oprimida; e continua a sê-lo, hoje mais do que nunca.
(Continuação)
IV
A GENS GREGA
Nos tempos pré-históricos já os gregos, como os pelasgos e outros povos da mesma origem tribal, estavam constituídos em séries orgânicas idênticas á dos americanos: gens, fratria, tribo, confederação de tribos. Poderia faltar a fratria, como entre os dóricos, ou a confederação de tribos, que não se chegava a formar em todos os lugares, mas em todos os casos era sempre a gens a unidade. Ao tempo em que os gregos surgiram na história, estavam nos umbrais da civilização; entre eles e as tribos americanas de que temos falado medeiam quase dois grandes períodos de desenvolvimento, dois período que os gregos da época heróica levam de vantagem aos iroqueses. Por isso, a gens dos gregos já não é, de modo algum a gens arcaica dos iroqueses; o quadro do matrimônio por grupos começa a diluir-se notavelmente. O direito materno cedeu ao direito paterno o seu posto e, por isso, a riqueza privada que surgia abriu a primeira brecha na constituição gentílica. Outra brecha adveio, como conseqüência natural da primeira: ao introduzir-se o direito paterno, a fortuna de uma rica herdeira que se casa passa ao marido dela, quer dizer, a outra gens, com o que se destrói todo o fundamento do direito gentílico; dessa forma, não apenas se terá por licite: mas ainda por obrigatório, nesse caso, o casamento da jovem núbil no seio da sua gens, para evitar a saída das riquezas.
Segundo a História da Grécia de Grote, a gens ateniense, em especial, unia-se em torno de:
1. Solenidades religiosas comuns e exclusividade de sacerdócio em honra de um deus determinado, suposto fundador da gens, assim caracterizado por um sobrenome especial.
2. Um lugar comum para enterrar os mortos (Verifique-se em Eubúlides de Demóstenes).
3. Mútuo direito de herança.
4. Obrigação recíproca de prestação de socorro, defesa e apoio contra a violência.
5. Direito e dever recíprocos de casar, em certos caso, dentro da gens, sobretudo quanto às órfãs e herdeiras.
6. Posse, pelo menos em certos casos, de uma propriedade comum, com um arconte (magistrado) e tesoureiro próprio.
A fratria agrupava várias gens, mas menos estreitamente; também nela, entretanto, encontramos direitos e deveres recíprocos, da mesma natureza, especialmente a comunidade de certos ritos religiosos e o direito de perseguir o homicida no caso de assassinato de um membro da fratria. O conjunto das fratrias de uma tribo tinha, por sua vez, cerimônias sacras periódicas, sob a presidência de um phylobasileu (chefe de tribo) eleito entre os nobres (eupátridas).
Aqui se detém Grote. Marx acrescenta: "Por detrás da gens grega, o selvagem (por exemplo, o iroquês) pode ser sempre reconhecido." E quanto mais aprofundamos nossas investigações mais nitidamente o reconhecemos. Pois a gens grega tem também os seguintes atributos:
7. Descendência segundo o direito paterno.
8. Proibição do matrimônio dentro da gens, excetuado o caso das herdeiras. Essa exceção, tornada um preceito, prova a validade de antiga regra. E esta resulta do princípio geralmente adotado de que a mulher, por seu matrimônio, renunciava aos ritos religiosos de sua gens e passava a seguir os da de seu marido, na fratria do qual era inscrita. Isso e uma famosa passagem de Dicearca provam que a regra era o matrimônio fora da gens. Becker, em seu Charicdes, afirma que ninguém tinha o direito de casar-se dentro de sua própria gens.
9. Direito de adoção na gens, exercido mediante adoção pela família, mas com formalidades públicas e só em casos excepcionais.
10. Direito de eleger e depor os chefes. Sabemos que cada gens tinha o seu arconte, mas em parte alguma consta que esse posto fosse hereditariamente privativo de determinadas famílias. Até o fim da barbárie, as probabilidades são sempre contra a herança dos cargos, que seria totalmente incompatível com as condições de absoluta igualdade de direitos entre ricos e pobres no seio da gens.
Não apenas Grote, mas também Niebuhr, Mommsen e todos os demais historiadores que tem estudado a antiguidade clássica falharam na colocação do problema da gens. Por mais corretas que sejam as descrições que fazem de algumas de suas características, jamais chegaram a ver nela mais do que um grupo de famílias, e por isso não puderam compreendei sua natureza e sua origem. Sob a constituição da gens á família nunca, pôde, ser e nem foi uma célula orgânica, porque o marido e a mulher pertenciam necessariamente a duas gens diferentes. A gens, como um todo, integrava a fratria, e esta a tribo; mas a família pertencia em parte à gens do marido e em parte à gens da mulher. O Estado tampouco reconhece a família do direito público; até aqui ela só existe no direito privado. E, no entanto, todos os trabalhos históricos escritos até o presente partem da suposição absurda (que no século XVIII, sobretudo, chegou a ser inabalável) de que a família monogâmica, pouco mais antiga que a civilização, é o núcleo ao redor do qual se foram cristalizando gradualmente a sociedade e o Estado.
"Façamos notar ao senhor Grote - diz Marx - que mesmo quando os gregos fazem derivar suas gens da mitologia, nem por isso essas gens deixam de ser mais antigas que a mitologia com deuses e semideuses criados por elas mesmas."
Morgan cita de preferência Crote por ser este uma testemunha eminente e insuspeita. Mais adiante, Grote refere que cada gens ateniense tinha um nome derivado de seu suposto fundador; que, antes do tempo de Sólon, como regra geral, e depois, no caso de morte sem testamento, os membros da gens (gennêtes) do defunto herdavam sua fortuna; e em caso de homicídio o direito e o dever de perseguir o assassino ante os tribunais cabia primeiro aos parentes mais próximos, depois aos demais membros da gens e, por último, aos membros da fratria da vítima. "'.tudo que sabemos a respeito das anais antigas leis atenienses está baseado na divisão em gens e fratrias".
A descendência das gens de antepassados comuns tem dado muita dor de cabeça aos “sábios filisteus” de que fala Marx. Como proclamam que tais antepassados são puro mito, e, assim, não podem explicar de modo algum que as gens se tenham formado de famílias distintas, sem consangüinidade, original, para explicar a existência da gens recorrem a um dilúvio de palavras, que giram num círculo vicioso e não vão além desta proposição: a genealogia é evidentemente um mito, mas a gens é uma realidade. E, para concluir, diz Grote (os comentários entre parênteses são de Marx ): "Ouvimos falar dessa genealogia, mas raramente, porque só é trazida ao público em situações de especial solenidade. Mas as gens de menor importância tinham seus ritos próprios comuns ( "muito estranho, senhor Grote "), um antepassado sobrenatural e uma genealogia comum tal como as mais importantes (muitíssimo estranho isso, senhor Grote, em gens de menor importância!" ); o plano fundamental e a base ideal ("não ideal, cavalheiro, mas carnal, ou, em alemão, fleischlich" ) eram iguais para todas elas".
É o seguinte o resumo de Marx da resposta de Morgan a essa argumentação: "O sistema de consangüinidade que corresponde à gens em sua forma primitiva - e os gregos a tiveram como os demais mortais - assegurava o conhecimento por parte de todos os membros da gens dos graus de parentesco que os relacionavam entre si. Aprendiam-no na prática, desde a mais tenra infância, em virtude da suma importância que isso tinha para eles. Com a família monogâmica, caiu no esquecimento. O nome da gens criou uma genealogia junto da qual a da família monogâmica parece-nos insignificante. Esse nome comprovava a ascendência comum daqueles que o usavam; mas a genealogia da gens remontava a tempos tão longínquos que seus membros já não podiam demonstrar seu parentesco mútuo real, exceto num pequeno número de casos em que os ascendentes comuns eram mais recentes. O nome, ele mesmo, era uma prova irrefutável da ascendência comum, exceto nos casos de adoção. A negação atual da consangüinidade entre os gentílicos, por outro lado, tal como é feita por Grote e Niebuhr, que encaram a gens como una criação puramente fictícia e poética, é digna de exegetas idealistas e da cultura livresca das traças. Porque o encadeamento das gerações, sobretudo com a aparição da monogamia, se perde na poeira dos tempos, e porque a realidade passada aparece refletida nas imagens fantásticas da mitologia, os velhos e simplórios filisteus concluíram, e concluem ainda, que uma genealogia imaginária criou gens reais!"
A fratria, como entre os americanos, era uma gens-mãe dividida em várias gens-filhas, ás quais servia de laço de união e que as fazia, amiúde, descender também de um antepassado comum. Assim, segundo Grote, "todos os membros contemporâneos da fratria de Hekateu tinham um só deus como avô em décimosexto grau". Portanto, todas as gens daquela fratria eram literalmente irmãs, gens-irmãs. A fratria aparece já como unidade militar em Homero, na célebre passagem onde Nestor dá este conselho a Agamenon: "Coloca os homens por tribos e por fratrias, para que a fratria preste auxílio à fratria e a tribo á tribo". A fratria tinha também o direito e o dever de castigar o homicida que matasse um de seus membros, o que indica que, em tempos anteriores, tinha tido o direito de cobrar o "preço do sangue" (Wergeld). Além disso, tinha festas e santuários comuns; pois o desenvolvimento de toda a mitologia grega, a partir do velho e tradicional culto dos árias á natureza, foi essencialmente devido ás gens e às fratrias e se produziu no seio delas. Tinha, ainda, a fratria um chefe (phratriarchos) e, segundo de Coulanges, assembléias cujas decisões tinham força de lei, um tribunal e uma administração. Mesmo o Estado de um período posterior, que ignorava a gens, deixou às fratrias certas funções públicas de caráter administrativo.
A reunião de várias fratrias aparentadas constitui a tribo. Na Ática, havia quatro tribos, cada uma de três fratrias constituídas, por sua vez, de trinta gens cada uma. Esta divisão meticulosa dos grupos pressupõe uma intervenção consciente e planejada na ordem espontaneamente nascida. Como, quando e porque isso sucedeu não diz a história .grega, e os próprios gregos só conservam lembranças que não vão além da época heróica.
As diferenças de dialeto eram menos desenvolvidas entre os gregos, aglomerados em um território relativamente pequeno, do que entre os americanos que habitavam vastos bosques; contudo, também aqui, apenas tribos da mesma língua mãe aparecem reunidas formando grupos maiores e até a pequena Ática tem seu próprio dialeto, que mais tarde chegou a ser língua predominante em toda a prosa grega.
Nos poemas de Homero, encontramos já a maior parte das tribos gregas formando pequenos povos, no seio dos quais as gens conservavam ainda completa independência, o mesmo se dando com as fratrias e as tribos. Esses povos já viviam em cidades amuralhadas; a população aumentava paralela mente com o rebanho, o desenvolvimento da agricultura e o nascimento dos ofícios manuais; ao mesmo tempo, cresciam as diferenças de riqueza, e com estas o elemento aristocrático dentro da velha e primitiva democracia, que tinha nascido naturalmente. Os diferentes povos. mantiveram incessantes guerras pela posse dos melhores territórios e também com o objetivo do saque, pois a escravização dos prisioneiros de guerra já era uma instituição reconhecida.
A constituição dessas tribos e desses pequenos povos era, naquele momento, a seguinte:
1 – O conselho
A autoridade permanente era o conselho (bulê), primitivamente formado talvez pelos chefes das gens, e mais tarde, quando o número destas chegou a ser demasiado grande, formado por um grupo de indivíduos eleitos, o que deu ocasião a que se desenvolvesse e reforçasse o elemento aristocrático. Dionísio diz que o conselho da época heróica era constituído por aristocratas (kratistoi). O conselho tomava a decisão final quanto a assuntos importantes. Em Ésquilo, o conselho de Tebas é que toma a decisão de enterrar Etéocles com grandes honrarias e de atirar o cadáver de Polinices aos cães, para que o devorassem. Com a instituição do Estado, posteriormente, o conselho se converteu em Senado.
2 - A assembléia do povo (ágora).
Entre os iroqueses, vimos que, o povo, homens e mulheres, circunda o conselho reunido em assembléia e toma a palavra, dentro da ordem, influindo dessa maneira nas determinações do mesmo. Entre os gregos homéricos, tais "circunstantes" (expressão jurídica do antigo alemão: Umstand) acham-se transformados em uma verdadeira assembléia geral popular, exatamente como se deu com os germanos dos tempos primitivos. Esta assembléia era convocada pelo conselho para a decisão de assuntos importantes; nela, todos tinham o direito de falar. A decisão se tomava pela contagem das mãos levantadas (Ésquilo, em As Suplicantes), ou por aclamação. A assembléia era soberana e decidia como instância derradeira, pois, como disse Schömann (Antiguidades Gregas), "quando se discute medida que requer a cooperação do povo para ser posta em prática, jamais Homero refere qualquer meio pelo qual o povo pudesse ser constrangido a decidir contra a sua vontade". Naquela época, em que todo membro masculino adulto da tribo era guerreiro, não havia ainda uma força pública separada do povo e que se lhe pudesse opor. A democracia primitiva se achava ainda em pleno florescimento, e isso não deve ser esquecido e deve até servir de base para se avaliar a força e a situação do conselho e do basileu.
3 - O chefe militar (basileu).
Sobre esse ponto, Marx faz o seguinte comentário: "Os sábios europeus, em sua maioria lacaios natos dos príncipes, fazem do basileu um monarca no sentido moderno da palavra. O republicano ianque Morgan protesta contra essa idéia. Do untuoso Cladstone e de sua obra (Juventus Mundi) diz com tanta ironia quanto verdade: "Mr. Gladstone, que apresenta aos seus leitores os chefes gregos dos tempos heróicos como reis e príncipes, com requintadas qualidades de gentleman, é, ainda assim, forçado a reconhecer que, em geral, parece estabelecido entre eles o direito de primogenitura, mas não suficientemente comprovado." É de se supor que tal direito de primogenitura, admitido pelo próprio Gladstone com tais reservas, ser-lhe-á de bem pouca importância e para nada lhe poderá valer.
Já vimos qual era o estado de coisas quanto á herança de cargos de direção entre os iroqueses e demais índios: todos os cargos eram eletivos, a maior parte dentro mesmo da gens e privativos dela. Gradualmente, chegou-se a dar preferência ao parente gentílico mais próximo em caso de vacância - ao irmão ou ao filho da irmã do ex-ocupante do cargo - sempre que não pesassem motivos para excluí-los. Portanto, se entre os gregos, sob o império do direito paterno, o cargo de basileu costumava passar ao filho ou a um dos filhos, isto demonstra simplesmente que os filhos tinham, ali, a probabilidade de sucessão legal por eleição popular, mas não prova absolutamente a herança das funções sem eleição do povo. Aqui vemos, entre os iroqueses e entre os gregos, o primitivo embrião das famílias nobres, com uma situação especial dentro da gens, e o primitivo embrião da chefia militar hereditária e da monarquia (este só entre os gregos). Supõe-se, pois, que entre os gregos o basileu devesse ser, ou eleito pelo povo, ou confirmado pelos órgãos representativos deste - o conselho ou a agora - como se fazia relativamente ao "rei" (rex) entre os romanos.
Na Ilíada, o chefe militar, que é Agamenon, aparece não corno rei supremo dos gregos, mas como supremo comandante de um exército confederado ante uma cidade sitiada; e quando surgem dissensões entre os gregos, Ulisses apela para esta qualidade no trecho famoso: "Não é bom que muitos mandem ao mesmo tempo; um só deve dar ordens", etc. (Aquele verso tão conhecido a respeito do cetro foi intercalado posteriormente). "Ulisses não faz, aqui, uma conferência a respeito das formas de governo; pede apenas que se obedeça em campanha ao comandante supremo. Entre os gregos, que aparecem diante de Tróia apenas como um exército, o processo na ágora é bastante democrático. Quando Aquiles fala de presentes, ou melhor, da partilha do saque, não encarrega Agamenon ou qualquer outro basileu de fazê-la, incumbe dela os "filhos dos Aqueus", isto é, o povo. Os atributos "Filho de Zeus", ou "Gerado por Zeus", nada provam, pois todas as gens descendiam de algum deus, e a gens do chefe da tribo naturalmente de um deus mais importante – no caso, Zeus. Até indivíduos não alforriados, como o porqueiro Eumeu e outros, são "divinos" (dioi e theioi), e isso na Odisséia, quer dizer, numa época bem posterior à descrita pela Ilíada. Também na Odisséia, são chamados de "heróis" o mensageiro Mulios e o cantor cego Demódoco. Em resumo: a palavra basiléia, que os escritores gregos empregam para a chamada realeza homérica, acompanhada de um conselho e de uma assembléia popular, tem somente a significação de democracia militar (porque o comando dos exércitos era o que a distinguia)." (Marx ).
Além de suas atribuições militares, o basileu tinha atribuições religiosas e judiciais; estas últimas indeterminadas, mas as religiosas concernentes à sua condição de representante supremo da tribo ou da federação de tribos. Nunca se fala de atribuições civis, administrativas; mas o basileu parece que foi membro do conselho, devido precisamente ao seu cargo.
Traduzir basileu pela palavra alemã Kónig (rei) é, pois, etimologicamente muito exato, pois König (kuning) vem de kuni, künne, e significa chefe de uma gens. Mas o basileu da Grécia antiga não corresponde, de modo algum, ao König (rei) dos nossos dias. Tucídides chama expressamente a antiga basiléia de patrikê, quer dizer, derivada das gens, e diz que ela teve atribuições fixas e limitadas. E Aristóteles diz que a basiléia dos tempos heróicos foi um comando militar exercido sobre homens livres e o basileu foi um general, juiz e sumo-sacerdote. Portanto, não tinha poder governamental no sentido ulterior da palavra (1).
Desse modo, na constituição grega da época heróica vemos, ainda cheia de vigor, a antiga organização gentílica, mas já observamos igualmente o começo da sua decadência: o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder contrário à gens; a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia; a escravidão, a princípio restrita aos prisioneiros de guerra, desenvolvendo-se depois no sentido da escravização de membros da própria tribo e até da própria gens; a degeneração da velha guerra entre as tribos na busca sistemática, por terra e por mar, de gado, escravos e bens que podiam ser capturados, captura que chegou a ser uma fonte regular de enriquecimento. Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. Faltava apenas uma coisa: a instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às sovas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras - a acumulação, portanto, cada vez mais acelerada, das riquezas -; uma instituição que, em uma palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda.
É essa instituição nasceu. Inventou-se o Estado.
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(1) Tal como acontece com o basileu grego, tem-se apresentado falsamente o chefe militar azteca como um príncipe, no sentido moderno da palavra. Morgan foi o primeiro a submeter a uma crítica histórica os relatos dos espanhóis, a princípio equivocados e exagerados, depois conscientemente mentirosos, provando que os índios do México se encontravam na fase média da barbárie, mais adiantados, portanto, que os índios pueblos de Novo México, e provando que a constituição deles, tanto quanto era possível julgar pelos confusos relatos disponíveis, era a seguinte: uma confederação de três tribos, que haviam tornado outras tributárias, governada por um conselho e um chefe militar federais. Deste último, os espanhóis fizeram um “imperador”. (Nota de Engels)
A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO
(Continuação)
V
GÊNESE DO ESTADO ATENIENSE
Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu, pelo menos na primeira fase da sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos da constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com poderes realmente governamentais - quando uma "força pública" armada, a serviço dessas autoridades ( e que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro "povo em armas", que havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos. Morgan descreve principalmente as modificações formais; as condições econômicas que as produziram, tive eu mesmo que acrescentá-las, em grande parte.
Na época heróica, as quatro tribos dos atenienses ainda estavam instaladas em diferentes territórios da Ática. Mesmo as doze fratrias que as compunham parece que tinham diferentes instalações nas doze cidades de Cecrope. A constituição era a da época heróica: assembléia do povo, conselho e basileu. Até onde alcança a história escrita, encontramos a terra já repartida e como propriedade privada, o que corresponde á produção e ao comércio de mercadorias relativamente desenvolvido da fase superior da barbárie. Além de cereais, vinho e azeite eram produzidos. O comércio marítimo no Mar Egeu passava cada vez mais dos fenícios aos áticos. Como conseqüência da compra e venda da terra e da crescente divisão do trabalho entre a agricultura e os ofícios manuais, comércio e navegação, logo se confundiram os membros das gens, fratrias e tribos. Nos territórios das fratrias e das tribos, fixaram residência habitantes que, embora fossem do mesmo povo, não faziam parte daquelas corporações e, por conseguinte, eram estranhos a elas e ao local. Eram estranhos porque, em tempos de paz, cada fratria e cada tribo administravam, elas mesmas, seus assuntos internos, sem consultar o conselho popular ou o basileu de Atenas, e esses habitantes que passavam a residir na área da fratria e da tribo não podiam, naturalmente, tomar parte na administração delas.
Isso desequilibrou de tal modo a organização gentílica que, nos tempos heróicos, se tornou necessário modificá-la e adotou-se a constituição atribuída a Teseu. A principal mudança foi a instituição de uma administração central em Atenas; parte dos assuntos que até então eram resolvidos independentemente pelas tribos foi declarada de interesse comum e transferida ao conselho geral, sediado em Atenas. Os atenienses foram, com isso, a um ponto ao qual não chegou qualquer dos povos indígenas da América: a simples confederação de tribos vizinhas foi superada pela fusão de todas em um único povo. Daí nasceu o sistema de leis ateniense popular, mais evoluído que o das tribos e das gens. Garantiam-se, assim, os cidadãos de Atenas, quanto a certos direitos e proteção legal, mesmo em territórios que não pertenciam ás suas tribos. Deu-se, dessa forma, o primeiro passo no sentido da ruína da constituição gentílica, o primeiro passo no sentido da admissão de cidadãos que não pertenciam a qualquer das tribos da Ática e que não eram, nem se tornaram integrantes da organização gentílica ateniense. A segunda instituição atribuída a Teseu foi a divisão de todo o povo em três classes: os eupátridas ou nobres, os geomoros ou agricultores e os demiurgos ou artesãos, - sem considerar a divisão em gens, fratria e tribo - garantida para os nobres a exclusividade do exercício das funções públicas. É verdade que, tirante a exclusividade garantida à nobreza, essa divisão não teve qualquer efeito mais importante, pois não estabelecia nenhuma outra distinção de direitos entre as classes; mas sua importância para nós é a de indicar os novos elementos sociais que, imperceptivelmente, se iam desenvolvendo. Ela demonstra que o costume de herança de cargos públicos por certas famílias na gens já se tinha transformado em um direito quase incontestado; que essas famílias, poderosas por suas riquezas, começaram a formar, fora de suas gens, uma classe privilegiada especial; e que o Estado nascente sancionou essa usurpação. Demonstra que a divisão do trabalho entre camponeses e artesãos se tinha tornado suficientemente forte para disputar a primazia em importância social à antiga divisão em gens e tribos. Por fim, é a proclamação nítida do inconciliável antagonismo entre a sociedade gentílica e o Estado; o primeiro sintoma de formação do Estado consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada gens em privilegiados e não privilegiados, e dividindo estes últimos em duas classes, segundo seus ofícios, e opondo-as uma à outra.
A história política de Atenas no seguinte período, até Solon, é muito imperfeitamente conhecida. As funções do basileu caíram em desuso; arcontes saídos da nobreza passam a dirigir o Estado. A autoridade da aristocracia vai aumentando cada vez mais, até chegar a se tornar insuportável, por volta do ano 600 antes da nossa era. Os principais meios para estrangular a liberdade comum foram o dinheiro e a usura. A nobreza residia principalmente em Atenas e em seus arredores, onde o comércio marítimo, misturado com ocasional pirataria, a enriquecia e concentrava dinheiro em suas mãos. Desde então, o sistema monetário que se desenvolvia penetrou, como um ácido corrosivo, na vida tradicional das antigas comunidades agrícolas, baseadas na economia natural. A constituição das gens é inteiramente incompatível com o sistema monetário: a ruína dos pequenos agricultores da Ática coincide com o relaxamento dos velhos laços da gens que os protegiam. As letras de câmbio e a hipoteca (porque os atenienses já tinham inventado a hipoteca) não respeitaram nem a gens nem a fratria. A velha constituição das gens desconhecia o dinheiro, bem como o crédito e as dívidas fiduciárias. Por isso, o poder do dinheiro nas mãos da nobreza, poder incessantemente aumentado, criou um novo direito consuetudinário de garantia do credor contra o devedor e de apoio à exploração dos pequenos agricultores pelos possuidores de dinheiro. Todos os distritos rurais da Ática estavam crivados de hipotecas, afixadas em marcas onde se podia ler que as terras onde se achavam a marca estavam hipotecadas por tanto (em dinheiro) a fulano de tal (pessoa). Os campos que não tinham tais marcas é porque geralmente haviam sido vendidos, já que suas hipotecas teriam vencido e não foram pagas, pelo que o nobre a quem estavam hipotecados os adquirira. O camponês podia considerar-se feliz quando este novo proprietário nobre lhe permitia estabelecer-se ali como colono e viver com um sexto do produto do seu trabalho, pagando ao dono os cinco sextos restantes como arrendamento. E mais: quando o produto da venda do lote de terra não bastava para cobrir o montante da dívida hipotecária, e não havia com que cobrir a diferença, o camponês devedor tinha que vender seus filhos nos mercados de escravos estrangeiros para satisfazer por completo o seu credor. A venda dos filhos pelo pai foi, pois, o primeiro fruto do direito paterno e da monogamia. E, se, ainda assim, o vampiro não se saciasse, podia vender como escravo seu próprio devedor. Essa foi a aurora da formosa civilização do povo ateniense.
Semelhante revolução teria sido impossível no passado, quando as condições de existência do povo ainda correspondiam à constituição gentílica; mas agora isso ocorria - e sem que ninguém entendesse como. Voltemos, por um instante, aos iroqueses: entre eles era inconcebível uma situação como essa agora imposta aos atenienses, por assim dizer sem a sua participação e, certamente, contra a sua vontade. Entre os iroqueses, permanecendo o mesmo o modo de produzir as coisas necessárias à existência, nunca se poderiam criar tais conflitos, como que impostos de fora, jamais se poderia engendrar um antagonismo entre ricos e pobres, exploradores e explorados. Os iroqueses estavam muito longe ainda do domínio da natureza, embora dentro dos limites que esta lhes fixava fossem os donos de sua própria produção. A parte as más colheitas em suas hortas, a escassez de peixe em seus lagos e rios e da caça em seus bosques, sabiam qual podia ser o fruto do seu modo de proporcionar os meios de subsistência. Sabiam que, umas vezes abundantemente, outras não, determinados recursos de subsistência deveriam ser obtidos. Mas não seriam obtidas revoluções sociais imprevistas, ruptura dos vínculos gentílicos ou cisão das gens e das tribos em classes socialmente antagônicas. A produção se realizava dentro dos mais estreitos limites, mas os que produziam eram donos daquilo que produziam. Esta era a imensa vantagem da produção bárbara, vantagem que se perdeu com o advento da civilização e que as gerações futuras terão o dever de reconquistar, dando-lhe por base o poderoso domínio da natureza que o homem já conseguiu em nossos dias, e a livre associação hoje tornada possível.
Entre os gregos, as coisas eram diferentes. A aparição da propriedade privada dos rebanhos e dos objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias. Este foi o germe da revolução subseqüente. Quando os produtores deixaram de consumir diretamente os seus produtos, desfazendo-se deles mediante comércio, deixaram de ser donos dos mesmos. Já não podiam saber o que ia ser feito dos produtos, nem se algum dia ( conforme se tornou possível) estes seriam utilizados contra os produtores, para explorá-los e oprimi-los. Por essa razão, aliás, é que nenhuma sociedade pode ser dona de sua própria produção, pelo menos de um modo duradouro, nem controlar os efeitos sociais de seu processo de produção, a não ser pela extinção da troca entre os indivíduos.
Os atenienses, porém, deviam aprender, e rapidamente, como, ao nascer a troca entre os indivíduos e ao se transformarem os produtos em mercadorias, o produto vem a dominar o produtor. Com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. Mais tarde veio o dinheiro, a mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas; mas, quando os homens inventaram o dinheiro, não suspeitavam que estavam criando uma força social nova, um poder universal único, diante do qual se iria inclinar a sociedade inteira. Este novo poder, subitamente aparecido, sem que o desejassem ou sequer compreendessem seus próprios criadores, fez-se sentir aos atenienses com toda a brutalidade da sua juventude.
Que fazer ? A antiga constituição gentílica se havia mostrado impotente contra o avanço triunfal do dinheiro; e além disso era absolutamente incapaz de abranger, dentro de suas limitações de concepção, conceitos como dinheiro, credores, devedores, cobrança compulsiva das dívidas. E, no entanto, ali estava o novo poder social; nem os piedosos desejos nem o ardente afã por voltar aos bons tempos passados conseguiram expulsar do mundo o dinheiro ou a usura. Além disso, outras brechas menos importantes foram abertas na constituição gentílica: a mistura dos membros das gens e das fratrias por todo o território ático, particularmente na cidade de Atenas, aumentava de geração em geração, embora naquele tempo um ateniense ainda não pudesse vender fora da gens a sua casa de moradia, embora pudesse vender lotes de terra em geral. Com os progressos da indústria e do comércio, se havia aprofundado mais e mais a divisão do trabalho entre os diferentes setores da produção - a agricultura e os ofícios manuais - e entre estes últimos (os ofícios manuais) uma infinidade de subdivisões, tais como o comércio, a navegação, etc. A população se dividia agora, segundo suas ocupações, em grupos bem definidos, cada um dos quais tinha urna série de novos interesses comuns, para os quais não havia lugar na gens ou na fratria, levando à criação de novas funções que, precisamente, zelassem por eles. Havia crescido muitíssimo o número dos escravos que, naquela época, já excedia sobejamente o dos atenienses livres. A constituição da gens não conhecia, a princípio, escravidão alguma; não sabia, por conseguinte, manter sob o seu jugo uma massa de pessoas não livres. E, por último, o comércio havia atraído a Atenas uma multidão de estrangeiros, que se tinha instalado ali, em busca de lucro fácil - e, apesar da tolerância tradicional, esses adventícios não gozavam de qualquer direito ou proteção legal sob o velho regime, pois constituíam para o povo um elemento estranho e um foco de mal-estar.
Em resumo: a constituição gentílica ia chegando ao fim. A sociedade, crescendo a cada dia, ultrapassava o marco da gens; não podia conter ou suprimir nem mesmo os piores males que iam surgindo à sua vista. Enquanto isso, o Estado se desenvolvia sem ser notado. Os novos grupos, formados pela divisão do trabalho (primeiro entre a cidade e o campo, depois entre os diferentes ramos de trabalho nas cidades), haviam criado novos órgãos para a defesa dos seus interesses, e foram instituídos ofícios públicos de todas as espécies. O jovem Estado precisou, então, de uma força própria, que, para um povo de navegadores como os atenienses, teve que ser, em primeiro lugar, uma força naval, usada em pequenas guerras e na proteção dos barcos de comércio. Num tempo incerto, antes de Solon, foram instituídas as naucrárias, pequenas circunscrições territoriais, doze em cada tribo. Cada naucrária devia prover, armar e tripular um barco de guerra e, ainda, dispor de dois cavaleiros. Essa instituição minava a gens em dois pontos: primeiro porque criava uma força pública que não era de modo algum idêntica ao povo em armas; segundo, pela primeira vez, dividia o povo nos negócios públicos, não conforme grupos consangüíneos e sim de acordo com a residência comum. Vamos ver a significação disso.
Como o regime gentílico não podia prestar qualquer auxílio ao povo explorado, este tinha que se voltar mesmo para o Estado nascente, que lhe acabou prestando a desejada ajuda pela constituição de Solon, com o que aproveitou para se fortalecer ainda mais, em detrimento do velho regime. Não vamos falar aqui de como se realizou a reforma de Solon, no ano 594 antes de nossa era. Solon iniciou a série das chamadas revoluções políticas e o fez com um ataque à propriedade. Até hoje, todas as revoluções têm sido contra um tipo de propriedade e em favor de outro; um tipo de propriedade não pode ser protegido sem que se lese outro. Na grande Revolução Francesa, a propriedade feudal foi sacrificada para que se salvasse a propriedade burguesa; na revolução de Solon, a propriedade dos credores sofreu em proveito da dos devedores: as dívidas foram simplesmente declaradas nulas. Ignoramos os pormenores, mas Solon se gaba, em seus, poemas, de ter feito arrancar aos campos hipotecados as marcas de dívida e de ter propiciado o repatriamento dos homens que, endividados, foram vendidos como escravos ou fugiram para o estrangeiro. Isso não podia ser feito senão por uma flagrante violação dos direitos de propriedade. E, na realidade, desde a primeira até a última dessas chamadas revoluções políticas, todas elas se fizeram em defesa da propriedade, de um tipo de propriedade, e se realizaram por meio do confisco dos gens (dito de outro modo: do roubo) por outro tipo de propriedade. Tanto é assim que há dois mil e quinhentos anos não se tem podido manter a propriedade privada senão com a violação dos direitos da propriedade.
Tratava-se, porém, na ocasião, de impedir que os ateniense s livres pudessem ser escravizados novamente. A princípio, conseguiu-se isso com medidas gerais, por exemplo, proibindo os contratos de empréstimo nos quais o devedor dava por garantia a sua pessoa. Além disso, fixou-se a extensão máxima de terra que um mesmo indivíduo podia possuir, com o propósito de pôr um freio à avidez dos nobres de se apoderarem das terras dos camponeses. Depois, houve mudanças na própria constituição; consideramos como principais as seguintes:
O conselho elevou-se até quatrocentos membros, cem de cada tribo. Até aqui, a tribo seguia sendo, pois, a base do sistema. Mas este foi o único ponto da constituição antiga adotado pelo Estado recém-nascido. Além disso, Solon dividiu os cidadãos em quatro classes, de acordo com a sua propriedade territorial e a produção desta. Os rendimentos mínimos fixados para as três primeiras classes foram de quinhentos, trezentos e cento e cinqüenta medimnos de grão, respectivamente (um medimno equivale a uns quarenta e um litros); os que possuíam menos terra ou não a tinham de modo algum formavam a quarta classe. Só podiam ocupar os cargos públicos em geral os indivíduos das três primeiras classes, e os cargos atais importantes cabiam apenas aos indivíduos da primeira classe; a quarta classe não tinha sertão o direito de usar da palavra e votar nas assembléias. Era nessas assembléias que se elegiam os funcionários todos; nelas eles tinham de prestar contas de sua gestão, elaboravam-se todas as leis, e a maioria estava em mãos da quarta classe. Os privilégios aristocráticos foram renovados, em parte, sob a forma de privilégios da riqueza, mas o povo obteve o poder supremo. Por outro lado, as quatro- classes formaram a base de uma nova organização militar. As duas primeiras forneciam cavalaria, a terceira servia na infantaria de linha, e a quarta como tropa ligeira (sem couraça) ou na frota; é provável que esta classe servisse a soldo.
Introduzia-se agora, portanto, um elemento novo na constituição: a propriedade privada. Os direitos e os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam e, na medida em que ia aumentando a influência das classes abastadas, iam sendo abandonadas as antigas corporações consangüíneas. A constituição gentílica sofria outra derrota.
Entretanto, a gradação dos direitos políticos segundo a propriedade não era uma dessas instituições sem as quais o Estado não pode existir. Por maior que seja o papel representado na história das constituições dos Estados por essa gradação, grande número deles, e precisamente os mais desenvolvidos, prescindiram dela. Na própria Atenas, essa instituição só representou um papel transitório; desde Aristides, todas as funções públicas eram acessíveis a qualquer cidadão.
Durante os oitenta anos que se seguiram, a sociedade ateniense tomou gradativamente a direção que se tornou efetiva em seu desenvolvimento nos séculos posteriores. Pusera-se freio à usura dos latifundiários anteriores a Solon, bem como à concentração excessiva da propriedade territorial. O comércio e os ofícios, incluídos os artísticos, que se praticavam cada vez mais largamente, com base no trabalho escravo, chegaram a ser as ocupações principais. As pessoas ilustravam-se mais. Em lugar de explorar os concidadãos de maneira iníqua, como a princípio, o ateniense passou a explorar os escravos e os estrangeiros. Os bens móveis, a riqueza como dinheiro, o número dos escravos e dos navios cresciam sem cessar; mas ao invés de constituírem simples meios de adquirir terras, como no período anterior, cheio de limitações, converteram-se em uma finalidade por si mesma. De um lado, a nobreza antiga no poder encontrou, assim, competidores vitoriosos nas novas classes de ricos industriais e comerciantes; mas, de outro lado, ficou destruída também a última base dos restos da constituição gentílica. A gens, as fratrias e as tribos, cujos membros já andavam dispersos por toda a Ática e viviam completamente misturados, tornaram-se de todo inúteis como corporações políticas. Muitos, inúmeros cidadãos atenienses, não mais pertenciam a qualquer gens; eram imigrantes que haviam conseguido o direito de cidadania, não tendo sido, porém, admitidos em união gentílica alguma. Além disso, cada dia era maior o número de imigrantes estrangeiros que só gozavam do direito de proteção.
Enquanto isso, prosseguia a luta entre os partidos: a nobreza trabalhava para reconquistar os seus velhos privilégios e, por algum tempo, foi bem sucedida - até que a revolução de Clístenes ( ano 509 antes de nossa era) definitivamente a abateu, pando por terra com ela o derradeiro vestígio da constituição gentílica.
Na sua nova constituição, Clístenes ignorou as quatro velhas tribos baseadas nas gens e nas fratrias. Substituiu-as uma organização nova, cuja base, já ensaiada nas naucrárias, era a divisão dos cidadãos de acordo com o local de residência. Dividia-se, então, não mais o povo, mas o território: politicamente, os habitantes se tornaram meros apêndices das regiões.
Toda a Ática ficou dividida em cem municípios (demos). Os cidadãos (demotas) de cada demos elegiam seu chefe - demarca - e seu tesoureiro, assim como trinta juízes dotados de poderes para resolver os assuntos de pouca importância. Tinham, igualmente, um templo próprio e um deus protetor ou herói, servido por sacerdotes eleitos pelo povo. O poder supremo no demos pertencia à assembléia dos demotas. Conforme adverte Morgan, com muito acerto, este é o protótipo das comunidades urbanas da América que se governam por si mesmas. O Estado nascente teve como ponto de partida, em Atenas, a mesma unidade que distingue o Estado moderno em seu mais alto grau de desenvolvimento.
Dez dessas unidades (demos) formavam uma tribo; mas esta, ao contrário da antiga tribo gentílica (geschlechtsstamm); chamou-se agora tribo local (Ortsstamm). A tribo local não era apenas um corpo político auto-administrado, era também um corpo militar. Elegia seu phylarca ou chefe de tribo, que comandava a cavalaria, um taxiarca para a infantaria e um stratego para o comando de todas as tropas recrutadas no território da tribo. Armava cinco naves de guerra com seus tripulantes e comandantes. E recebia como guardião-simbólico um herói da Ática, cujo nome levava. Por último, cabia à tribo, ainda, eleger cinqüenta conselheiros para o conselho de Atenas.
Coroava este edifício o Estado ateniense, governado por um conselho de quinhentos representantes eleitos pelas dez tribos e, em última instância, pela assembléia do povo, na qual todo cidadão ateniense tinha direito a participação e voto. Pela administração da justiça em seus diversos setores, zelavam os arcontes e outros funcionários. Em Atenas não havia depositário supremo do poder executivo.
Com essa nova constituição, e pela admissão de um grande número de clientes (Schutzwerwandter), em parte imigrantes e em parte ex-escravos, os órgãos da gens ficaram à margem da gestão dos assuntos políticos, degenerando em associações privadas e em sociedades religiosas. Mas a influência moral, as concepções e idéias tradicionais da velha época gentílica viveram ainda bastante e só foram desaparecendo paulatinamente. Foi o que se viu em outra instituição, posterior, do Estado
Vimos que um dos traços característicos essenciais do Estado, é a existência de uma força pública separada da massa do povo. Atenas não tinha, ainda, senão um exército popular e uma frota equipada diretamente pelo povo, que a protegiam contra os inimigos do exterior e mantinham em obediência os escravos, que já constituíam a maioria da população na época. Para os cidadãos, essa força pública só existia, a princípio, em forma de polícia; esta é tão velha como o Estado e, por isso, os ingênuos franceses do século XVIII não falavam de nações civilizadas, mas de nações policiadas ("nations policées"). Os atenienses instituíram, pois, junto com o seu Estado, uma polícia - um verdadeiro corpo de guardas a pé e a cavalo - formada de arqueiros, ou, como se diz no Sul da Alemanha e na Suíça: Landjäger. Contudo, esse corpo de guardas era constituído de escravos. Tal ofício parecia tão indigno para o ateniense livre que ele preferia ser detido por um escravo armado a cumprir ele mesmo aquelas funções tão aviltantes. Era uma manifestação da antiga maneira de sentir das gens. O Estado não podia existir sem a polícia; mas, quando jovem, não conseguia fazer respeitável um ofício tão desprezível aos olhos dos antigos gentílicos - não tinha ainda, autoridade moral para isso.
O rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e da indústria prova como o Estado, já então definido em seus traços principais, era adequado à nova condição social dos atenienses. O antagonismo de classe, no qual se fundamentavam agora as instituições sociais e políticas, não era mais o que existira entre os nobres e o povo, e sim o antagonismo entre escravos e homens livres, entre clientes e cidadãos. No seu tempo de maior florescimento, Atenas contava 90 000 cidadãos livres, aí compreendidas as mulheres e as crianças; os escravos de ambos os sexos, no entanto, somavam 365 000 pessoas, e os imigrantes e libertos chegavam a 45 000. Para cada cidadão adulto havia, no mínimo, dezoito escravos e mais de três metecos. A causa da existência de um número tão grande de escravos, o que possibilitava esse número, era o fato de trabalharem muitos escravos juntos, sob as ordens de capatazes, em grandes oficinas manufatureiras. Mas, com o progresso do comércio e da indústria, vieram o acúmulo e a concentração das riquezas em poucas mãos, e com isso o empobrecimento da massa dos cidadãos livres, aos quais só ficava o recurso de escolher entre: competir com o trabalho dos escravos, fazendo trabalho manual ( o que era considerado desonroso, baixo, e era pouco proveitoso), ou converter-se em mendigos. Este último caminho foi escolhido. Como, porém, constituíam a maior parte dos cidadãos, os que assim fizeram, acabaram por levar à ruína todo o Estado ateniense. Não foi a democracia que arruinou Atenas, como pretendem os lacaios pedantes dos monarcas no professorado europeu, e sim a escravidão - que proscrevia o trabalho do cidadão livre.
A formação do Estado entre os atenienses é um modelo notavelmente característico da formação do Estado em geral, pois, por um lado, se realiza sem que intervenham violências, externas ou internas (a usurpação de Pisístrato não deixou o menor traço de sua curta duração), enquanto faz brotar diretamente da sociedade gentílica uma forma bastante aperfeiçoada de Estado, a república democrática, e, por outro lado, ainda, porque estamos bem informados de suas particularidades mais essenciais.